Por Pablo Rodrigues*
“Os filmes tocam nossos corações, despertam nossa visão e mudam a forma como nós vemos as coisas. Eles nos levam para lugares. Eles abrem portas e mentes. Filmes são a memória das nossas vidas. Precisamos mantê-los vivos.”
Dos cineastas americanos vivos, Martin Scorsese é considerado por muitos o maior de todos e um dos melhores de todos os tempos (opinião compartilhada por este crítico). Ao longo de mais de 50 anos de carreira, Scorsese construiu uma obra de extrema qualidade, que influenciou e influencia cineastas em todo o mundo, uma filmografia invejável, a qual possui algumas obras-primas como Taxi Driver (1976), Touro Indomável (1980), Os Bons Companheiros (1990), o recente O Irlandês (2019), dentre outras. Porém, ao se falar do diretor, geralmente lembramos de seus filmes violentos, do seu grande domínio da linguagem cinematográfica, dos maravilhosos planos-sequência e, principalmente, de seus “filmes de máfia”. No entanto, um aspecto fundamental de sua filmografia é pouco discutido, a saber, o aspecto político. A obra scorseseana é, acima de tudo, um estudo sociopolítico da vida urbana capitalista, em especial da sociedade americana.
Filho de imigrantes italianos operários, Scorsese foi um dos cineastas que revolucionaram o cinema americano nas décadas de 1960 e 1970. Juntamente com nomes como Francis Ford Coppola, Brian de Palma, Steven Spielberg, George Lucas, dentre outros, fez parte do movimento cinematográfico conhecido como Nova Hollywood, o qual foi responsável à época, por trazer a realidade social americana para as telas de forma crítica e mais realista. Dos cineastas desse período, Scorsese talvez seja aquele que mais preservou essas características em sua filmografia. Até hoje o diretor ainda se mantém relevante tanto na qualidade técnica de seus filmes, quanto nas discussões políticas que propõe com os mesmos. Contudo, faz-se importante explicar que, ao se referir à política, refiro-me ao conceito amplo do termo, o qual diz respeito ao modo como vivemos em sociedade e as relações de poder que estabelecemos entre nós e com o meio que nos cerca. Sendo assim, no presente texto, buscarei demonstrar como esta crítica social e, consequentemente política do Scorsese se mostra presente em sua obra e como isso a mantém relevante.
O indivíduo scorseseano
Ao longo de sua filmografia, Scorsese sempre direcionou seu olhar (e consequentemente o nosso) para o submundo, para aquilo que a sociedade não quer ver, para a violência, a corrupção e, principalmente, para personagens complexos, muitas vezes desagradáveis, porém, que expõem, através de suas complexidades, as contradições da sociedade americana em que vivem. O diretor sempre parte de uma visão sócio histórica de mundo, na qual o ser humano é entendido sempre como um ser social, resultado de uma relação dialética com o meio social no qual está inserido. Em outras palavras, o “indivíduo scorseseano” é um produto do seu meio, ao mesmo tempo que também o constrói e o transforma.
Esta característica é perceptível em todas as suas obras. Em Taxi Driver (1976), por exemplo, o protagonista da trama, Travis Bickle, (vivido brilhantemente por Robert De Niro), é um motorista de táxi sociopata e paranoico, veterano do Vietnã, com uma saúde mental extremamente abalada, que vive na Nova Iorque da década de 1970, uma cidade violenta, suja e corrupta que, ao mesmo tempo que condena o personagem quando este toma atitudes violentas contra políticos, o aplaude e legitima sua violência quando esta é direcionada contra as pessoas consideradas “marginais” (negros, cafetões). Nesse sentido, Travis é fruto de um meio social contraditório e violento que, ao invés de o ajudar, intensifica suas paranoias e sua sociopatia, prejudicando ainda mais sua saúde mental e gerando consequências sociais extremas.
(Táxi Driver)
Da mesma forma o protagonista de Touro Indomável (1980), Jake La Motta (De Niro novamente, magnífico), é um personagem à primeira vista odioso. Porém, Scorsese evita a vilanização do mesmo e nos mostra Jake como um personagem complexo, que cresceu em um bairro violento do subúrbio de Nova Iorque, dominado pela máfia, onde teve que usar da violência para se impor desde cedo, tendo que ser um verdadeiro touro dentro e fora dos ringues. Ao mesmo tempo, o contexto social do filme (década de 1950) é um ambiente extremamente machista e conservador. Assim, ao conhecermos esse contexto no qual o protagonista está inserido, o mesmo ganha camadas e passamos a entender melhor sua personalidade e atitudes, ainda que continuemos a repudiá-las.
Estes são apenas alguns exemplos. Contudo, estes tipos de personagens e de narrativas estão presentes em toda a obra do Scorsese. Seus indivíduos nunca são representados numa visão maniqueísta, como é comum ao cinema hollywoodiano. Não são mocinhos ou vilões, são seres humanos contraditórios, cuja subjetividade não está desvinculada do ambiente social do qual fazem parte. No entanto, esta visão sócio histórica dos indivíduos não estaria completa sem conhecermos este ambiente social, o qual é muito específico na filmografia do diretor: a sociedade capitalista americana.
A sociedade americana sob o olhar do Scorsese
A sociedade americana retratada nos filmes do Scorsese é o oposto da visão romântica do “american way of life” que Hollywood propagou por tanto tempo. Para o diretor, os Estados Unidos são uma sociedade violenta, corrupta, adoecida e adoecedora, na qual o “sonho americano” nada mais é que uma falácia. E essa visão não é à toa já que, assim como seus personagens, Scorsese é fruto de seu meio, tendo crescido em Little Italy, um bairro de imigrantes italianos do subúrbio de Nova Iorque que, por muito tempo, foi um lugar violento dominado pela máfia local. O próprio diretor teve familiares que se envolveram com a máfia. E suas vivências com esse contexto social se refletem em suas obras, principalmente seus filmes de máfia, pelos quais é mais conhecido.
Ao longo de sua carreira, Scorsese dirigiu quatro filmes sobre o universo da máfia, Caminhos Perigosos (1973), Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995) e O Irlandês (2019). Juntos estes filmes compõem o que chamo de “quadrilogia da máfia”. Embora não possuam ligação direta entre si, a não ser pelo fato de abordarem o mesmo tema, estes filmes acabam se relacionando tematicamente e, ao serem analisados em conjunto, revelam-se um estudo profundo sobre o universo da máfia e da sociedade americana.
(Os Bons Companheiros)
A começar pelo fato de que, nesses filmes, os protagonistas, ou seja, os mafiosos, sempre são imigrantes. Contudo, o que pode parecer uma visão xenófoba, na verdade é uma dura crítica à sociedade americana, a qual sempre vendeu para o mundo a imagem de que ela é “a terra das oportunidades”, que recebe de braços abertos aqueles/as que vem de fora e que estão necessitados. No entanto, a realidade é justamente o oposto. A xenofobia é uma característica forte da sociedade americana. Até pouco tempo o país estava sendo governado por um presidente que tentou construir um muro para impedir a entrada dessas pessoas no país. Assim, ao não encontrar as oportunidades prometidas pelo “sonho americano”, essas pessoas muitas vezes recorrem ao crime para conseguir alcançar um maior status social. É justamente isso que vemos nos filmes de máfia citados anteriormente. Nestes, a máfia surge como um meio de ascensão social.
Outro elemento marcante desses filmes é a violência. Scorsese é conhecido por filmes violentos. No entanto, diferente de outros cineastas, o diretor nunca utiliza a violência de forma gratuita, ela é sempre justificada e uma consequência do contexto social no qual os personagens estão inseridos. No entanto, em sua quadrilogia da máfia, a violência ganha outro significado. Se a máfia é o meio que proporciona a ascensão social dos indivíduos, a violência é o instrumento dessa escalada. Contudo, se os imigrantes nesses filmes conseguem ascender socialmente na sociedade americana apenas através da corrupção e da violência, isto se dá pelo fato desta sociedade ser igualmente corrupta e violenta.
No entanto, esta ascensão também é uma ilusão, pois ela não é duradoura e cobra um alto preço. Em todos os filmes da quadrilogia, os personagens ascendem socialmente para, logo em seguida, decaírem. Como o personagem Henry Hill (Ray Liotta) de Os Bons Companheiros, o qual desde a adolescência queria ser um “gangster”. Porém, após conseguir e viver os privilégios do universo da máfia, decai e termina por viver escondido e dependente de drogas. Da mesma forma o Frank Sheeran (Robert De Niro novamente) de O Irlandês, que vai de braço direito dos chefões da máfia à um velhinho esquecido em um asilo.
Há ainda um quinto filme do Scorsese que geralmente não é lembrado como um filme de máfia, embora este crítico o considere como tal, que é Gangues de Nova Yorque (2002). Este longa é importante pois nele o diretor vai além em sua crítica à sociedade americana, explorando as raízes da corrupção e da violência do país, bem como de sua xenofobia. Além de Gangues, podemos citar também O Lobo de Wall Street (2013), que faz uma crítica à ganancia e perversidade do capitalismo americano.
(Gangues de Nova Yorque)
Assim, diante do exposto, podemos perceber que o cinema de Martin Scorsese é um cinema extremamente político, pois tem como foco de seus temas as relações estruturais de poder presentes na sociedade americana. Soma-se a isso sua inigualável qualidade técnica, buscando sempre atualizar-se e inovar na linguagem cinematográfica. Por estas razões sua obra permanece ainda muito relevante no contexto atual, pois ela desconstrói o “sonho americano”, gerando reflexões importantes, cutucando a ferida e expondo as mazelas da maior potência mundial para o mundo.
Scorsese pode ter se sofisticado tecnicamente, mas demonstra ainda manter o espírito crítico e transgressor que era a essência da Nova Hollywood nas década de 60 e 70. Um mestre que não se acomoda e está sempre nos provocando e lembrando que o cinema, assim como toda forma de arte, também é político e pode ser uma importante ferramenta para transformações sociais.
Confira o bate papo sobre a matéria no vídeo a seguir.
Saiba mais sobre o cinema de Scorsese.
*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.
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