Revisitando o Animal Cordial em Período Eleitoral

Por Sthefaniy Henriques*

O que seria O Animal Cordial se não um terror que é puro suco de Brasil atualmente? Escrito pela cineasta baiana Gabriela Amaral Almeida no ano de 2014 enquanto a diretora acompanhava a onda de violência crescente contra a até então presidenta Dilma Rousseff, O Animal Cordial antecipou a representação de um medo que se iniciou em 2017 e em 2022 ocupa o centro do imaginário de parte da população brasileira: a tendência autoritária de Jair Bolsonaro e a possibilidade de o regime democrático cair nos últimos meses de seu governo.

Ambientado em apenas um cenário, o primeiro longa-metragem de Almeida transforma o La Barca, um pequeno restaurante com direcionamento para a classe média em um local que será cenário de um homem autoritário que busca fazer justiça com as próprias mãos e resolver o que considera empecilhos para a harmonia do local. Esse homem, ao perceber que o Estado é frágil o suficiente para solucionar qualquer problema que venha a acontecer naquele restaurante, toma o poder, criando um ambiente hostil, violento e coercivo.

Essa noite de horrores é construída em um bairro nobre de São Paulo. Falando um pouco mais sobre os momentos que antecedem a derrocada, neste bairro um proprietário educado gerencia o seu restaurante em uma noite que aparenta ser como a qualquer outra. Próximo do horário de fechamento da cozinha, acompanhamos um período sonolento no salão, paralelamente a inquietude entre os funcionários responsáveis pelo preparo dos pratos. Na cozinha, há trabalhadores inquietos pelo horário de trabalho extrapolado, enquanto que no salão o proprietário gentil é atencioso com um casal afortunado que demora a escolher sua refeição. Este casal se utiliza de cada sugestão do dono do restaurante como um impulso para subjuga-lo, mas subjuga principalmente a garçonete que os atende ao lado de Inácio. Inicialmente, a apresentação de tais personagens vai lembrar a estrutura de uma pirâmide social, onde quem possuí mais poder aquisitivo dominará os que estão abaixo. Inácio domina seus empregados, mas os ricos comandam Inácio.

O ataque ao La Barca

Magno (Humberto Carrão) e seu primo Nuno (Ariclenes Barroso) invadem o local, ambos portando armas que mais tarde descobriremos que eram falsas. Inácio, ao contrário de todos os demais personagens que se encontravam em pânico, confronta-os com uma arma e bravamente consegue aprisionar os assaltantes. Inácio não pretende ligar para a polícia, afinal, o mesmo acredita que ela não será capaz de resolver o caso. O dono do restaurante não compadece de fé com uma instituição do Estado e o autoritarismo naquele local se inicia quando ele toma a função da polícia, decidindo a pena e o destino dos assaltantes. Inácio pronuncia frases como ‘‘polícia não adianta’’ e ‘‘bandido tem que morrer’’. No protagonista existe um fascínio pela violência no qual ações duras e cruéis se tornam uma resposta para indisciplinas.

Quando tal situação é desencadeada, não existe um diálogo e a busca do proprietário por mediar tal situação. Inácio faz daquele assalto uma desculpa para legitimar uma conduta opressora que não surge a partir do momento em que o Magno e seu primo invadem o local. A invasão, na verdade, será o estopim para o desencadeamento de um ódio que foi nutrido no ambiente do restaurante e suas relações por longos anos. Se pensarmos no sistema fascista, o que ocorre no La Barca é estreitamente parecido. Se o sistema fascista, segundo Zeev Sternhell (2014) surge em períodos de crises nacionais como uma resposta radical a desordem social, econômica e política e faz uma oposição direta a forças políticas já existentes, o autoritarismo e a definitiva tomada de poder de Inácio surgem como uma resposta radical de um proprietário exausto de sempre se sentir prejudicado pelo estado no qual o Brasil se encontra.

Intolerância e O nós versus eles

 O Ambiente do La Barca naquela noite era a perfeita representação do Brasil, era diverso e não estava isento da dinâmica das relações sociais brasileiras e sua invisível, mas perceptível hierarquização. Além do proprietário Inácio, no restaurante estava a equipe da cozinha, com destaque para Djair (Irandhir Santos), um nordestino homossexual que ocupava a função de chefe e a garçonete Sara (Luciana Paes), uma mulher branca sem voz ativa, submissa aos desejos do chefe ao ponto de gerar mal estar no grupo social que ela faz parte. Do lado de quem se beneficia e paga pelos serviços está Amadeu (Ernani Moraes) um policial aposentado e o casal de grande poder aquisitivo, Vêronica (Camila Morgado) e Bruno (Jiddu Pinheiro).

Uma vez que já conhecemos o evento que se aproxima, podemos nos debruçar nas relações entre os personagens, com grande destaque a dinâmica de Inácio e seu cozinheiro, Djair. Inácio, além de levar crédito pelas receitas feitas pelo seu cozinheiro, trata Djair como um ninguém, com grande indiferença e descaso pelos pedidos de seu funcionário, o porta-voz de toda cozinha. Djair, que pediu demissão uma vez e entende que Inácio precisa de seus serviços para o restaurante continuar funcionando, pressiona o seu chefe com pedidos trabalhistas mínimos e, naquela noite, decide aguardar para conversar com o chefe no salão, ao lado dos clientes afortunados, causando um mal-estar no local, visto que Djair tem cabelos longos e possui trejeitos considerados afeminados.

Inácio vê Djair como uma ameaça silenciosa, tanto é que quando ele rende os assaltantes, o mesmo afirma que Djair ordenou aquela ação para prejudica-lo. Não há provas que Djair mandou e tal atitude acaba reiterando algo que podemos notar desde os minutos iniciais do filme: Inácio possuí a clássica paranoia baseada em meros impulsos intuitivos e tais impulsos acabam por ser causados por uma outra característica típica do autoritarismo: o incomodo com o outro, a intolerância. O proprietário não suporta a ideia de Djair ascender socialmente e individualmente devido seu talento na cozinha e tal ódio é ampliando por Djair ser nordestino, por ser homossexual.

Djair, entretanto, não é o único atingindo. Inácio promove violência e desligamento (morte) de quem ousa desafiar e/ou não se alinha ao que é pregado pelo mesmo, pelo que o proprietário defende. Desta forma, não existe o tratamento especial para os ricos, tão pouco para ex-policiais, todos estão destinados ao mesmo destino, caso desafiem a disciplina e a autoridade.  

O Brasil em 2022

Enquanto desenvolvia esse texto, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) destacou uma matéria lançada no início de agosto feita por um dos seus docentes, a doutora em Ciência Política Camila Rocha para a Revista Piauí. O título era: Bolsonaro e o Marketing do ‘‘Homem Cordial’’. Em linhas gerais, Rocha disserta como candidaturas são trabalhadas de forma positiva, com o que ela define como ‘‘marcas positivas’’ (Lula com Bolsa Família, Marta Suplicy com o bilhete único) enquanto Bolsonaro parte do oposto. Bolsonaro é um homem cordial, mas não como o homem cordial definido pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda. Para Rocha, Bolsonaro é o homem cordial 2.0, aquele que promove discurso de ódio não porque ele realmente acredita naquilo, mas porque se deixou levar pelo calor das emoções. As ações de Bolsonaro, como reações hostis para defender seus filhos corruptos, por exemplo, são interpretadas pelo seu eleitorado como um pai nervoso que faz qualquer coisa para defender suas crianças injustiçadas e por isso, reage de tal maneira. A matéria da professora Camila Rocha caiu como uma luva para essa reflexão, afinal, Inácio também é esse projeto de homem cordial.

Mas, depois de tudo isso, o que Bolsonaro tem de similar com Inácio? O que o Brasil e a eleição têm haver com O Animal Cordial?  Bom, nós temos como principal figura política do país um homem que, assim como Inácio, ataca e não acredita nas instituições; que profere frases preconceituosas, LGBTQIA+fóbicas, xenofóbicas, sexistas e racistas. que defende o uso de armas para proteção; que defende pena de morte; que não se importa com trabalhadores; que não liga com a dor do outro e lida com sentimentos alheios a partir da visão se aquilo lhe prejudica ou não.

Bolsonaro, após atacar a urna eletrônica diversas vezes, com o mais recente e ilustre caso do encontro com embaixadores, afirma que não acredita no sistema eleitoral brasileiro, partilhando da mesma postura que Inácio em relação as instituições federais. Inácio, levado por essa paranoia de poder ser roubado a qualquer momento, tinha um plano caso algo ocorresse e, bom, é difícil não acreditar que o atual presidente também não possuí uma alternativa caso o resultado das urnas seja diferente. Devo ressaltar aqui a pergunta de William Bonner a Bolsonaro durante o Jornal Nacional em 22 de agosto, Bonner pergunta se Bolsonaro pretende respeitar o resultado das eleições, Bolsonaro responde que ‘‘desde que as eleições sejam limpas e transparentes’’, o que podemos traduzir como ‘‘desde que eu seja reeleito’’.

A grande questão é que o Brasil se tornou o La Barca antes do assalto e estamos caminhando para um momento que vai ser de tensão e apreensão acerca da nossa democracia. No dia 30 de outubro saberemos se o homem cordial, aquele que se deixa levar pelas emoções e por isso revela seu pior lado, vai causar uma ruptura institucional quando for surpreendido pelo resultado das urnas. Se sim, assim como em o Animal Cordial, saberemos que o resultado não será favorável para quem habita o Brasil e está, principalmente, contra os ideias de um autoritário.

Disponível na Netflix.

*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

 

 

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