Por Sthefaniy Henriques*
Pobres Criaturas provavelmente será o filme de maior visibilidade do diretor quatro vezes indicado ao Oscar, Yorgos Lanthimos. Por aqui, o filme deve chegar no final de 2023, mas sua estreia internacional está marcada para agosto, durante o Festival de Veneza. Eu tenho certeza que muitos irão ler essa matéria quando ficarem curiosos a respeito do Lanthimos ou, após assistir a Pobres Criaturas, se interessarem pelo cinema do diretor. Tal atitude é completamente justificável, Lanthimos é um dos diretores mais interessantes da atualidade.
Por isso, me senti na obrigação de escrever sobre Dente Canino, o filme que fez o diretor ser reconhecido internacionalmente e levou novamente os holofotes para o cinema produzido em território grego.
De início, devo enfatizar que Dente Canino não é um filme notório por ter recebido aclamação internacional, ou por ter lançado Lanthimos para o mundo, tão pouco por ser o primeiro longa-metragem do diretor – o primeiro é Kinetta (2005). Em 2009, a produção respondeu a sede do resto do mundo sobre como a população grega lidava com um momento político-econômico no qual a Grécia aparentava estar prestes a colapsar.
A Grécia Pré-Dente Canino
Em 2009, as consequências da Crise Financeira (2007-2008) chegaram à Grécia. O país que, até então, mascarava seus números diante da União Europeia viu seu déficit público ser revelado. A surpresa mundial quanto a real situação econômica, fez que as autoridades gregas tomassem medidas que pudessem conter o desequilíbrio entre gastos e arrecadação a partir da aplicação do plano de austeridade, uma política que supostamente tornaria mais rígida o controle de gastos públicos.
A aplicação do plano reduziu benefícios para aposentados, diminuiu salários, aumentou os impostos, causou demissão em massa em órgãos públicos e uma onda crescente de desemprego. Entretanto, o problema do déficit público não foi solucionado, contrariamente, a divida continuou a aumentar, causando uma grande insatisfação popular.
O mercado audiovisual e os cineastas também foram atingidos. Em uma atmosfera generalizada de contestação e ondas de protestos, uma nova geração de cineastas também decidiu agir. Papanikolao aponta que essa nova geração – composta por diretores entre 30 e 40 anos de idade – vai se denominar Filmmakers in the Fog (Cineastas na Neblina), ironizando o Cineastas da Grécia (FOG), organização oficial de cineastas gregos e também fazendo referência ao filme Paisagem na Neblina, clássico filme grego de Theo Angelopoulos. O grupo acreditava que o sistema tradicional de financiamento, produção e apoio ao Cinema Grego havia sido a principal razão para a falta de novas produções e, por isso, era necessário mudanças.
Papanikolao também aponta que os Cineastas na Neblina possuíam a ambição da moldar um novo cinema grego, que rompesse com o controle sufocante dos estúdios, favorecimento para certos diretores e financiamentos estatais. O grupo até conseguiu conquistar alguns dos objetivos, mas a continuidade da crise financeira continuou a limitar o impulsionamento de produções.
Esse cenário generalizado de crise garantiu um olhar diferente da mídia estrangeira, que buscava constantemente por imagens e narrativas que poderiam representar a situação do país. Papanikolao, Mademli e Papadimitrio observaram que os olhares internacionais buscavam associar todo tipo de manifestação – artística ou não –, a crise.
O filme
Imagine uma casa isolada, localizada há dezenas de quilômetros de distância de uma residência vizinha e habitada por uma família cujo os filhos nunca ultrapassaram o portão de entrada e mal conseguem olhar o que há por cima das grandes cercas que rodeiam seu lar.
Normalmente, filmes sobre isolamentos, alienação parental e afins ganham uma carga dramática. Há nessas produções um tom de negação, de rejeitar o que está sendo projetado em tela, um não incentivo. Dente Canino não fica muito atrás nesse sentido, entretanto, o longa chama muito mais atenção pela vontade de provocar, rompendo com o conservadorismo narrativo que tais temáticas estão associadas, principalmente em filmes estadunidenses.
Considerando o interesse de Lanthimos em perturbar, Dente Canino aprofunda as relações de poder de um modo incomodante. No filme, o isolamento por si só não é o suficiente. A educação dos jovens – na casa dos 20 e poucos anos – fica sobre responsabilidade de seus pais, assim como todo o resto. Dessa maneira, as figuras paternas chegam até a controlar os instintos naturais de seus filhos, como o desenvolvimento do desejo e sexualidade. Para o filho único, é levado uma mulher do mundo exterior, já para as duas filhas, cabe a solidão. Em momento mais extremos, aliás, os pais não temem em incentivar o incesto.
Existe, portanto, um controle completo dos 3 jovens. Nesse sentido, o que mais se destaca é a distorção realizada. Quando, por acaso, eles aprendem uma palavra desconhecida, novos símbolos são destinados a tais. Zumbi vira uma espécie flor e telefone uma saleira. Os jovens escutam Fly Me to the Moon, de Frank Sinatra, pensando ser uma mensagem de seu avô sobre obediência e, no quintal, torcem para que um avião caia para tê-lo para si. Eles têm medo de gato, pois seu pai os ensinou que o animal é um grande predador de humanos e também acreditam que vão conseguir alimentar o primogênito que fugiu ao arremessar comida por cima do muro.
A distorção mais árdua desse controle dá nome ao filme. O dente canino, nesse sentido, é um símbolo de liberdade, no qual, talvez, os filhos nunca terão. A liberdade, o ato de deixar a casa e ver o que está por detrás dos muros, só pode acontecer caso o dente (sem ser o de leite), caia naturalmente.
Lanthimos, anos depois, fala sobre o verdadeiro objetivo do filme. O diretor reconhece que o filme mostra uma família patriarcal, mas que esse elemento não era o que lhe interessava. Em suas palavras, ‘‘o que nos interessava eram as maneiras pelas quais uma família ou grupo, não importa quem seja o líder, é governado e que tipo de impacto isso tem em cada membro do grupo, em sua compreensão do mundo, em sua educação. O que nos interessava eram as maneiras pelas quais você pode moldar a mente e o corpo de um ser humano com métodos extremos e os limites que essa situação pode atingir. Em outras palavras, ‘Dente Canino’ não é um filme sobre a família grega ou patriarcal ou sobre a sociedade; podemos ter nos inspirados nisso, mas se relaciona com todos os tipos de grupos semelhantes’’
Dente Canino na perspectiva internacional
A produção de Lanthimos ganhou o rótulo pela mídia intencional de ‘‘cinema de crise’’, uma nomeação que se tornou comum para exportação do cinema nacional grego após 2009. Em tese, o ‘‘cinema de crise’’ refletia os acontecimentos de 2009, dessa forma, os filmes eram caracterizados por apresentar os desafios do povo grego frente a crise econômica e suas consequências.
Em conjunto ao ‘‘cinema de crise’’, Dente Canino permitiu que a critica internacional elaborasse a Weird Wave Greek (Estranha Onda Grega), nome definido por Steven Rose, escritor da The Guardian, para caracterizar o movimento cinematográfico grego que se iniciava após a visibilidade internacional do filme. Sobre a Weird Wave, existe muitos debates sobre suas marcas, seus aspectos, mas as características mais proeminentes para caracterizar o movimento é a estranheza de seus filmes; suas alegorias excessivas; ansiedades biopolíticas e corpos aprisionados.
Os elementos citados vão se encontro a essa percepção de que a estranheza do filme de Yorgos foram usadas para falar de política, sobretudo, sobre as tendencias antidemocráticas do neoliberalismo, a desorientação da população com o anuncio da derradeira econômica, os males da crise e o controle do país imposto por credores internacionais.
Essa percepção do filme de Yorgos como algo puramente político não se esvaiu aos longos dos anos. Tanto é que, mesmo após a diminuição do interesse internacional pelo mesmo, foram elaborados vários artigos científicos sobre o significado do filme. Alguns artigos que gosto sobre os significados narrativos são ‘‘Whose crisis? Dogtooth and the invisible middle class’’ por Rosa Barotsi e ‘‘The Aesthetics of The Greek Financial Crises in Dogtooth por Olga Mantsion’’, pesquisas que continuam relacionando a obra de Yorgos com a crise grega, seja pela parte econômica ou social dela.
Uma interpretação alternativa (ou complementar)
Eu não desconsidero que a ligação entre Dente Carino e a crise exista. Pelo contrário, a própria dificuldade enfrentada por Yorgos e outros diretores para realização dos filmes durante o período fazem a produção estar ligada ao cenário. Mas eu proponho uma interpretação alternativa que também pode ser complementar a análise da crise e eu digo isso apenas para enriquecer o debate a respeito. Particularmente, sou sorridente a interpretação de Dente Canino ser uma releitura sobre algo mais grego do que a crise grega. Ao retomar a ideia de Yorgos sobre o filme ser uma representação do domínio de um grupo ou alguém por terceiros, Dente Canino aparenta ser uma interpretação moderna da Alegoria da Caverna, metáfora presente na obra A República, por Platão.
Embora observemos por quase todo filme os filhos presos em um mundo distorcido, o dente canino que todos possuem na arcada dentária significa a essência que todo ser humano tem de encontrar a sua própria liberdade.
Vencedor da mostra Un Certain Regard em Cannes e representante da Grécia no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, Dente Canino está disponível na Mubi.
*Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.