A Noite dos Desesperados

A sobrevivência dos estruturalmente excluídos pelo capitalismo em tempos de crise (1929/1967).

Por Sthefaniy Henriques*

Durante a Grande Depressão (1929), uma companhia que promove uma maratona de dança chega a Santa Monica, California. Difundindo uma nova competição no local, o prêmio anunciado era de US$1.500 dólares para o casal vencedor. 

Para participar da competição, o requisito era simples: Não precisava ser profissional, bastava ser sadio e apresentar um parceiro do sexo oposto igualmente saudável. Para vencer e ganhar a significativa quantia de dólares, ambos deveriam dançar juntos até serem os últimos na pista de dança, única condição no regulamento que consagraria os ganhadores e encerraria a edição. Dessa forma, ao depender unicamente da resistência dos candidatos, a prova poderia durar dias ou longas semanas.

Com 102 casais inscritos, eles deveriam permanecer se movimentando – após algumas semanas não era mais necessário dançar – durante o dia inteiro, possuindo como tempo de descanso 10 minutos a cada 2h. Durante esses 10 minutos, deveriam optar por fazer uma única atividade ou otimizar  tempo para suas necessidades básicas do momento, tais como tomar banho, ir ao banheiro, descansar as pernas, dormir, fazer a barba, trocar de meias ou tratar de qualquer outra necessidade humana que fosse possível ser realizada dentro do tempo estabelecido e do local da competição. Quanto a refeição, fonte de energia para o corpo, era realizada durante o tempo de competição, assim, os participantes tinham a oportunidade de se alimentar sete vezes ao dia, de pé, enquanto se mexiam.

Durante todo esse tempo eles eram assistidos, no duplo significado da palavra. Eram assistidos no sentido de receber ajuda e cuidado, ao programa disponibilizar médicos e enfermeiras para cuidar do bem estar e prestar assistência médica. Mas também eram assistidos no sentido de observação, nesse caso, a competição era muito similar aos atuais reality-shows, onde pagamos pay-per-view para consumirmos o quanto quisermos.

Dada uma breve explicação sobre o funcionamento dessa competição, talvez a questão que mais se sobressaía inicialmente é a sujeição, a escolha de homens e mulheres em aceitarem participar de uma competição que dura semanas, no qual as chances de vitórias são mínimas, em troca de US$750 dólares para cada (com a correção pela inflação dos EUA, US$700 dólares na época tinha o mesmo valor de compra de US$13,4 mil dólares em 2023).

Convém, portanto, inserir o contexto histórico visto no filme para, assim, compreendermos as motivações, o que leva as figuras do filme a entrarem em uma competição macabra.

A Grande Depressão

A quebra da Bolsa de Nova York revelou ao mundo as falhas no modelo econômico liberal. Desde então, escolas de pensamento econômico formulam diversas teorias para explicar a crise, teorias que vão encontrar respostas tanto no cenário interno dos Estados Unidos, como a possível má gestão da Federal Reserve Board, crescente concentração de renda em conjunto a alta produtividade do trabalho e superprodução de produtos agrícolas, bem como influencias internacionais.  Apesar da falta de consenso, um fato é que a crise causou um profundo desconforto na sociedade estadunidense, principalmente por acontecer após ao período conhecido como A Grande Transformação.

Antes do crash, os Estados Unidos viviam um período de positividade econômica, principalmente através de três elementos, observados por Flávio Limonicic como a imigração para as grandes cidades; a produção em massa de bens de consumo duráveis e a importância dos salários para os trabalhadores, este último que sustentava a demanda pelos produtos fabricados. Devido a esse modelo, os salários deveriam ser relativamente altos, para a sociedade consumir cada vez mais e suprir à quantidade de produtos que deixavam as fábricas. Nesse cenário, problemas começaram a ocorrer quando o nível de produtividade, ou seja, de fabricação de produtos aumentou mais do que o poder anual de compra da classe trabalhadora. Com a chegada da crise, cabe evidenciar que uma parcela dessa sociedade, que vivia seu American Way of Life, passou a encarar um cenário completamente distinto ao do consumo e prosperidade, agora substituído pelo cenário de fome e miséria.

De acordo Limoncic, o índice de desemprego passou de 3% em 1929 para 6,3% em 1930 e, em 1933, atingiu 30,5%, o que indica quase 12 milhões de trabalhadores passando por dificuldades. Nesse cenário, além dos personagens de A Noite dos Desesperados, vamos ter uma outra figura central que não está presente no filme, mas é igualmente importante, ao ser o criador da obra que inspira a produção.    

Lançado em 1969, o filme é uma adaptação do livro ‘‘Mas Não se Matam Cavalos?’’  do autor Horace McCoy. Publicado em 1935, a obra tem leve inspirações na própria vida do autor. Nascido em Pegram, Tennesse, mas criado em Nashville, ele serviu na França durante 18 meses na Primeira Guerra Mundial e, quando retornou, começou a trabalhar como editor de esportes do Dallas Journal, no Texas. Com o crash, McCoy se mudou para Los Angeles para tentar a carreira de ator, mas não vingou.

As dificuldades enfrentadas por McCoy na crise e, posteriormente, o fracasso em Hollywood é refletido na representação negativa que evidencia a sua desilusão, esta que vai perpassar a quebra da bolsa e centrar-se no mundo no cinema, arte identificada pelo autor como uma falsa salvação. McCoy, portanto, estava desapontado com o star system, Hollywood e, nesse sentido, com a própria ideia de sonho americano.

Desse modo, no livro McCoy situa Glória Beatty, figurante com aspiração de se tornar uma atriz famosa e Robert Syverten, figurante que deseja ser diretor de cinema, como protagonistas. O livro se inicia justamente com eles nos arredores do estúdio da Paramount, ambos se encontrando após perseguirem um assistente que poderia garantir um trabalho. Dado o fracasso do plano, eles terminam por reclamar da falta de oportunidades e, para garantir uma melhoria em suas condições de vida pelos próximos dias, decidem participar da competição de dança.

No livro, é evidenciado o porquê da falta de oportunidades, algo que pode ter sido enfrentado pelo próprio autor.

‘‘Sem um registro na Agência Central de Escalação, você não tinha muitas oportunidades. Os grandes estúdios ligavam para a Central e pediam quatro suecos ou seis gregos, ou dois camponeses da Boêmia, ou seis grã-duquesas, e a Central arrumava.’’

A visão de McCoy, nesse sentido, é bastante de sua época, afinal, ele exibe o convencimento sobre a regulamentação dos figurantes, da ideia da Agência como prestadora de bons serviços, suporte, bom pagamento e emprego a todo momento. A Central é criada com esse objetivo, claro, mas o que Samanta Barbas observa é a continuidade de um panorama bem similar a aqueles que não possuíam registro. De acordo com Barbas, em 1926, cerca de 9.690 se registravam todos os dias, mas apenas 1.000 eram empregados. Em 1927, 14.000 eram registados e apenas 700 encontravam trabalho por dia. Os que não arrumavam uma ponta para ao menos se sustentar por um dia, passavam fome na rua.

A Maratona para Marginalizados

No filme, Glória (Jane Fonda) e Robert (Michael Sarrazin) não se conheciam previamente, como no livro. Quando o parceiro de Glória é desqualificado antes mesmo da inscrição por estar doente, a única opção da figurante era Robert, que estava ali por acaso. Junto a eles, na fila para inscrição estavam outros competidores, no qual se destacam um outro casal de atores aparentemente profissionais – a atriz em idade avançada, portanto, descartada por Hollywood –; um marinheiro que serviu na Primeira Guerra Mundial e um casal vindo do outro lado do país, cujo a mulher estava visivelmente em gravidez avançada.

A diversidade no perfil dos participantes nos faz retornar a uma questão que levantei ainda no início desse texto, que é o porquê dessas pessoas se submeterem a uma competição tão desumana. Como já foi contextualizado o período da Grande Depressão, a resposta pode ser simples, correto? Bom, nem tanto. Em A Noite dos Desesperados, os personagens não são simplesmente pessoas que ficaram desempregadas com a crise, mas sim pessoas estruturalmente excluídas pelo capital, marginalizadas, aquelas que, na visão de Jeb Sprague, não podem nem, ao menos, ser considerada mão de obra reserva para o capitalismo. Os competidores são apenas figuras em condições desesperadoras, vidas descartadas pelo sistema, pessoas que sobrevivem ao invés de viver.

Essa marginalização fica muito visível quando James (Bruce Dern), ainda no início da competição, diz a sua esposa grávida Ruby (Bonnie Bedelia) para ela usar as sete refeições por dia como uma motivação para continuarem a dançar. A submissão as condições árduas, portanto, estava atrelada a garantia de que, enquanto estivessem dançando, desfrutariam de comida, uma cama individual para descansar e assistência médica disponível 24h por dia.

Enquanto para alguns se tratava apenas de sobreviver por mais alguns dias, para Glória, Robert e o outro casal de atores profissionais a competição também significativa visibilidade, a chance de conhecer alguém que poderia levá-los para dentro dos portões dos grandes estúdios de Hollywood. O filme, dessa forma, resgata a importância da sétima arte embutida na obra de McCoy, ou seja, o cinema como um fator solucionador para desesperos individuais. 

A fixação pelo estrelato em um cenário de crises não é em vão. Cabe ressaltar que, através da fomentação de grandes estrelas e a criação dos fã-clubes, Hollywood impulsionou um cenário atrativo para pessoas comuns. Como pontua Barbas, entre 1910 e 1930, foi estabelecido uma cultura inicialmente não-desejada de fãs, principalmente do sexo feminino, de deixarem suas vidas comuns para ir a capital do cinema (Hollywood) na busca de se tornarem estrelas. De início, isso foi desincentivado com a criação de notícias falsas para buscar assustar as garotas, como histórias de traficantes que iriam escravizar mulheres e traficantes de drogas que se aproveitariam das mesmas. Mas, logo depois, Hollywood entendeu que não precisava reprimir totalmente as paixões, e sim direcioná-las para os mais diversos tipos de consumo. Nisso, qualquer pessoa poderia comprar uma revista ou ir ao cinema assistir a história de alguma garota sortuda que saiu de uma pequena cidade e se tornou uma estrela de cinema. 

O filme, portanto, da continuidade a crítica de McCoy sobre a ideia ilusória de ascensão a qualquer momento.  Para isso, ele segue a mesma lógica vista no livro: Se a América era a terra de oportunidades e se o cinema poderia transformar desconhecidos em estrelas da noite para o dia, em momentos de crise, era para a indústria cinematográfica que sonhadores desafortunados deveriam recorrer, afinal, eles não tinham mais nada a perder. Uma vez que conseguissem um papel importante, a miséria e outras adversidades de vida desapareceriam.

Nesse sentido, o próprio discurso do organizador da competição, Rocky Gravo (Gig Young) promove essa clara perspectiva. Rocky desdenha da grande depressão, como se, ao final da competição, ela não fosse mais existir para os ganhadores e, sobretudo, vende a ideia da América como um local de prosperidade, de acordo com Rocky ‘‘Nas palavras de nosso grande líder Herbert Hoover: A prosperidade está logo ali na esquina.’’

Glória e Robert compartilham dessa mentalidade, entretanto, para a Glória, Hollywood não funciona propriamente como sonho, mas como última esperança. Aqui, eu relembro a ideia da marginalização, afinal, antes de ser figurante, Glória levava uma vida tão ruim quanto. Ela compartilha com Robert que veio de Dallas e deixou o lugar pois não via futuro em estar vivendo com um sírio açougueiro que mascava tabaco constantemente.  No livro, o passado de Glória é melhor trabalhado. No oeste do Texas, ainda criança, ela morou com os tios, o tio a molestava e a tia sempre brigava com a mesma. Quando cresceu, resolveu fugir para Dallas, mas não conseguiu um emprego e decidiu roubar algo para ficar sobre cuidados da polícia. Os policiais ficaram com pena e soltaram Glória, então, para não morrer de fome, foi morar com o sírio. Quando percebeu que não poderia ser feliz com ele, tomou veneno por duas noites, mas errou a medida e não conseguiu o desejado suicídio. No hospital, se recuperando, ela leu uma revista sobre as estrelas de cinema e resolveu ir para Hollywood.

Dando prosseguimento à conversa, quando Robert pergunta porque ela não desiste da ideia de se tornar uma estrela, no livro Glória questiona ‘‘Por que deveria? Posso me tornar uma estrela do dia para a noite. Veja Hepburn, Margaret Sullavan e Josephine Hutchinson. Mas vou contar o que eu faria, se tivesse coragem: pularia de uma janela ou me atiraria na frente de um bonde ou algo assim.’’

As partes extraídas do livro ajudam a evidenciar como, para além da alimentação e um teto seguro e seco para dormir, a competição era importante para o futuro de Glória e Robert. Na plateia, por algumas noites, algumas estrelas e diretores famosos estavam presentes para assistir a competição, a presença dessas figuras públicas era vendida pelas organizações como a chance da vida para os participantes, entretanto, não funcionava dessa forma. Quanto mais o filme se desenvolve, é possível perceber que atores, atrizes, diretores, produtores, todos pagavam para consumir a espetacularização do desespero humano, pagavam para ver os participantes dançaram conforme a música. Uma questão interessante em relação a presença do público, é que alguns candidatos tentavam extrair mais daquela situação, promovendo performances especiais como uma espécie de hora extra. Os mais necessitados, como a mulher grávida, vão gastar mais de suas limitadas energias para receberem moedas em troca, estas que seriam jogadas da plateia por toda pista de dança, como uma forma de caridade ou simplesmente de apreciação da humilhação.

Talvez, o momento mais duro do filme, com exceção da morte de Glória, seja justamente a parte onde percebemos que, além da barriga cheia, tais moedas serão o único pagamento que todos os competidores terão. A completa desilusão com a competição vem quando, após 50 dias, Rocky pede para que Glória e Robert se casem em prol do entretimento, afirmando que o casal ganharia cerca de US$200 ou US$300 dólares em presentes de casamento. Glória, inconformada com o pedido, declina a proposta, justificando que o prêmio da competição era mais que o dobro dos valores estipulados. Como reposta, Rocky fala que sim, o prêmio é de US$750 dólares para cada, mas com os descontos.

‘‘Essa maratona não se autofinancia, sabia? As contas se acumulam dia a dia. Tenho tudo anotado. Sai tudo do meu bolso. Lavanderia, limpeza, telefone, assistência média’’ Glória pergunta: ‘‘Vai cobrar isso de mim?’’, Rocky responde ‘‘só se ganhar’’.

O argumento de Rocky em relação aos gastos pode ser encarado como uma outra maneira de exploração, não apenas pelos descontos, mas pela não necessidade deles. No filme, todos os participantes, ainda nas primeiras semanas, atraíam patrocinadores, estes que lhe ofereciam US$4 dólares para cuidados, proviam meias, sapatos novos, roupas e afins em troca dos competidores vestirem camisas estampando sua marca. A questão do marketing, marcado nas costas de todos, também nos leva a representação de um cenário de venda do próprio corpo, que deixam de ser autônomos.  

Nesse sentido, Fernando Macedo, sucinta bem ao defender que ‘‘se no capitalismo só resta ao indivíduo a força de trabalho como mercadoria de troca, agora nada restava porque aqueles corpos exauridos já não lhes pertenciam. Afinal, sem condição de vender sua força de trabalho, que não encontrava demanda naquela situação de crise, o que os dançarinos trabalhadores estavam vendendo era o próprio corpo.’’   

Um filme sobre 1929 que também fala sobre seu período de produção

Após toda essa análise, cabe evidenciar que a produção é lançada já no início de um período de uma nova crise econômica, que começa a ser sentida em 1969 com o início de uma estagflação e se agrava em 1973. Novamente, pessoas ficaram desempregadas, os custos de vida aumentaram e, dada conturbada década de 1960, a desilusão com os Estados Unidos se tornaram ainda maior.

A Noite dos Desesperados, portanto, também é um retrato de seu próprio tempo e, talvez, ler o filme como um filme da década de 1960 torna sua mensagem final ainda mais poderosa e desoladora. Em um momento onde a televisão já registrava a violência em protestos, a brutalidade das forças americanas contra o povo vietnamita e os primeiros protótipos de reality-shows, o filme torna igualmente assistível o sofrimento humano, onde o público – assim como os consumidores de tv – cobiçam mais daquilo, independente se sintam prazer ou repulsa com as imagens, afinal, devido a popularização da tv, a espetacularização de qualquer tipo de conteúdo é bastante forte nesse momento.

Nesse sentido, há também um potencializador que seria o inicio de um extremo individualismo causado pelo modelo econômico neoliberal. Com um clima econômico bem mais predatório, mais desregulamentado e que está menos disposto a proteger empregos e trabalhadores, todos que não se encaixam, todos que não são aptos a oferecer sua mão de obra, são vistos novamente como descartáveis. Para esse descarte, houve um amplio no sistema carcerário, na gentrificação e também menos investimentos e até desligamento de programas do welfare state, isto é, programas de assistência financiadas pelo governo responsáveis por ajudar estadunidenses que apresentavam os mais variados problemas sociais.

Dito isso, o memorável suicídio de Glória pelas mãos de Robert pode ser encarado como o despertar para a cruel realidade causada pelo sistema capitalista. Glória, desde o início do filme se demonstrou abatida, com tendências suicidas devido a toda sua história de vida, mas o gatilho para a tentativa de um suicídio só acontece novamente quando ela percebe que nunca terá uma melhor condição de vida, nunca será atriz e está destinada a viver na miséria. Robert, ainda vivendo na ilusão de se tornar um grande diretor, compreende que Glória precisa ser desligada da sociedade, não porque ela simplesmente quer ser, mas porque também há um pensamento negativo partindo do jovem sobre como Glória viveria nos próximos meses. Portanto, quando Robert justifica a morte de Glória para os policiais com a icônica frase ‘‘Mas não se matam cavalos?’’, a lógica de seu pensamento é simples: Em tempos difíceis, é preciso sacrificar aqueles que não oferecem mais nada ao capitalismo.

Filme disponível na plataforma Looke e OldFlix

*Formada em História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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