Por Pablo Rodrigues*
A sociedade americana e suas contradições sempre foram objeto do interesse do aclamado cineasta Martin Scorsese. Ao longo de mais de quarenta anos de carreira, o diretor construiu uma filmografia que pode ser encarada, dentre outras perspectivas, como uma análise política acerca dos Estados Unidos. No entanto, com o diferencial de que tal análise geralmente é feita a partir da perspectiva do submundo. Em seu mais recente trabalho, ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES (2023), não é diferente. Nele, Scorsese propõe uma desconstrução do mito da conquista americana, em uma obra de forte teor político, que se mostra uma poderosa ferramenta de denúncia e justiça histórica.
Adaptação do livro-reportagem de mesmo nome, escrito pelo jornalista David Grann ao longo de dez anos, ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES conta a história real dos assassinatos que assolaram os membros da nação indígena Osage, durante a década de 1920, após estes descobrirem petróleo em suas terras, situadas no estado de Oklahoma, nos Estados Unidos. Esta descoberta fez dos Osage a comunidade mais rica do país à época, inflando ainda mais o preconceito e o ódio dos brancos colonizadores contra estas pessoas. Além disso, a investigação tardia acerca destes crimes foi determinante para a consolidação do que ficaria conhecido como FBI (Federal Bureau of Investigation), o departamento de inteligência americana.
Diferentemente do livro, o qual possui um foco grande na investigação dos assassinatos, o roteiro do filme, escrito a quatro mãos por Scorsese e Eric Roth, toma outros rumos ao deixar o processo investigativo em segundo plano para dar mais ênfase ao drama vivido pelos Osages. No entanto, compreendendo seu lugar de fala, Scorsese não se coloca de maneira presunçosa como “porta-voz” das vítimas. Ao invés disso, reconhece seu lugar de privilégio e denuncia os algozes desta história, a saber, os homens brancos colonizadores. No entanto, esta denúncia é feita ao estilo scorseseano, ou seja, assumindo a perspectiva dos assassinos. Ao fazer isso, o longa transforma o público em cúmplice desses personagens, conhecendo seu modo de pensar, suas artimanhas e crimes.
Entretanto, mesmo assumindo a perspectiva dos “vilões” dessa história, o roteiro não esquece das vítimas, no caso, o povo Osage. Estes são retratados de maneira muito respeitosa e sem cair em estereótipos. Principalmente na primeira hora do filme, o que acaba sendo fundamental para aumentar o peso dramático dos crimes que veremos ser cometidos contra os mesmos ao longo do restante da trama. Esta representação dos Osage se dá principalmente através da personagem Molly, a qual se mostra o coração da história, interpretada brilhantemente por Lily Gladstone. É através dela e de sua família que conhecemos mais sobre seu povo, sua cultura, sua forma de enxergar o mundo.
Contudo, em meio ao horror dos crimes retratados, o longa usa como fio condutor de sua narrativa uma história de amor, a saber, a relação entre Molly e o homem branco Ernest (Leonardo DiCaprio). Todos os acontecimentos da trama se interligam aos dois direta ou indiretamente. E o elenco não deixa a desejar. Lily Gladstone constrói Molly com uma interpretação contida, minimalista, porém, hipnotizante. A sutileza da atriz é poderosa, conseguindo comunicar muito com pouco. Já DiCaprio vai para outro lado. Seu Ernest é um personagem ganancioso, porém, bobo e altamente manipulável e o ator consegue transmitir tudo isso com muita verdade numa atuação intensa, expansiva, porém, sem exageros. Entre o casal está William Hale, interpretado pelo genial Robert De Niro. Hale é a mente por trás dos crimes contra os Osage. Um homem ardiloso e manipulador, encarnado pelo veterano ator numa atuação sutil, porém, assustadora.
Toda esta narrativa é conduzida com maestria pela direção de Scorsese, que mais uma vez está impecável. É interessante perceber como o diretor, em seus últimos trabalhos (SILÊNCIO e O IRLANDÊS), vem utilizando de uma abordagem mais contemplativa e de ritmo menos acelerado. Nesse sentido, o tempo vem sendo um fator fundamental nessas obras, justificando inclusive a longa duração das mesmas. Em ASSASSINOS, temos um primeiro ato propositalmente mais lento, para que possamos conhecer a fundo os personagens e o contexto da trama sem pressa e, aos poucos, o ritmo vai ganhando dinamismo e agilidade através da excelente montagem de Thelma Schoomaker, colaboradora habitual de Sorsese. Tal montagem ainda utiliza, de maneira sutil, quase sem percebermos, uma narrativa não-linear, antecipando acontecimentos futuros através da narração, numa espécie de flashforward em áudio, quando se faz necessário trazer para o público uma informação importante que só viria mais à frente na cronologia da trama. Além do uso de flashbacks, repetindo alguns acontecimentos por diferentes perspectivas.
O longa também faz um excelente trabalho de reconstrução de época, através do impecável design de produção e figurinos, somados à belíssima fotografia de Rodrigo Prieto, que prioriza o uso de cores quentes, remetendo à cultura Osage, porém, levemente dessaturadas, ressaltando a corrupção que afeta aquele ambiente. Complementando temos a maravilhosa trilha sonora de Robbie Robertson, a qual é sutil, assim como os personagens da trama e cresce nos momentos certos.
No entanto, para além da excelência técnica, chama a atenção no filme como Scorsese aproveita do cenário e da história que tem em mãos para, além de denunciar o massacre dos Osage, propor uma desconstrução do mito da “conquista americana” e, consequentemente, da história de seu país, principalmente ao trazer para sua obra elementos de um gênero tipicamente americano, o faroeste. É fato que, ao longo de sua história, o cinema hollywoodiano foi (e ainda é) utilizado como um importante aparelho de manutenção da hegemonia do capitalismo liberal americano, propagando sua lógica, seus valores e promovendo um problemático revisionismo acerca da formação sócio-histórica dos Estados Unidos. Nesse sentido, o faroeste clássico contribuiu fortemente para a construção, no imaginário popular, do mito da “conquista do oeste”, bem como para o racismo contra os povos originários indígenas do país, através da ideia da luta dos povos brancos “civilizados” contra os “pele-vermelhas selvagens”.
Tal revisionismo só começará a ser problematizado a partir da década de 1970 com o faroeste moderno. No entanto, ainda assim, a representação dos povos originários, de sua história e de seu genocídio ainda ficou a desejar na sétima arte. De lá pra cá, poucas foram as obras que trouxeram esta temática, menos ainda as que fizeram isso de forma crítica e com coerência histórica. Diante disso, ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES surge como um marco no cinema hollywoodiano, ao ressignificar os elementos do faroeste clássico, trazendo um protagonismo e uma representação respeitosa acerca dos povos nativos americanos. E o mais importante, expõe que a celebrada “conquista do oeste”, na verdade não passou de um imenso projeto colonialista e genocida. Desta forma, Scorsese escancara as contradições da sociedade americana, desta vez nos relembrando que a nação que é considerada “a maior democracia do mundo”, “a terra da liberdade”, se estruturou a partir do racismo, da xenofobia, do genocídio, da violência. Realidade esta que permanece até os dias de hoje, tanto nos EUA quanto no mundo.
Não há como assistirmos ao filme de Scorsese, por exemplo, sem fazermos um paralelo com o genocídio dos povos originários do nosso país, os quais ainda hoje lutam pela sobrevivência e contra a violência do homem branco e do Estado. Um exemplo é a tentativa recente do congresso brasileiro de aprovar o chamado Marco Temporal, o qual nada mais é do que uma tentativa institucional de negar aos povos indígenas do Brasil o direito às suas terras. Sem falar na impunidade para com os crimes cometidos contra estas pessoas todos os dias, incluindo assassinatos. Ou seja, o cenário muda, mas a história se repete, pois o problema não está no lugar, mas sim no modelo de sociedade em que vivemos, a saber, o modelo capitalista, o qual se estrutura a partir da desigualdade e da exclusão de todos os que não se adequam à sua lógica.
Enfim, ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES é mais uma obra-prima de Martin Scorsese. Um filme necessário, que desconstrói uma versão deturpada da história americana que o próprio cinema ajudou a criar. E é bom testemunhar como o próprio diretor reconhece a importância de sua obra, como podemos ver na genial e emocionante sequência final, onde a linha entre ficção e realidade é quebrada para nos lembrar que o que vimos na tela durante as quase três horas e meia de duração é mais do que um espetáculo artístico, é uma denúncia em forma de arte, que expõe as mazelas de uma sociedade cuja hegemonia política se deu e se mantém a partir do genocídio e do racismo. Negligenciar isso é continuar sendo cúmplice das atrocidades históricas do imperialismo capitalista.
*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.