Por Sthefaniy dos Santos Henriques*
Eu gostaria de começar esse texto com uma pergunta: Quando se trata da sétima arte, onde estão as mulheres?
Bom, se me fizessem essa pergunta, eu provavelmente responderia com outra pergunta que seria: ‘‘Como assim? Em que sentido?’’, mas entendo que essa questão pode direcionar nossos pensamentos para conclusões mais rápidas, mais direcionadas. Podemos presumir que se trata de atuação e citar filmes no qual mulheres são protagonistas, falar sobre sucessos de bilheteria protagonizados por mulheres e até remakes/reboots de filmes antes estrelados por homens que agora serão/são estrelados por elas.
Devido ao sucesso de Barbie e o recente acontecimento no Oscar em relação ao esnobe da diretora Greta Gerwig, essa pergunta pode, felizmente, gerar outras respostas. ‘‘Onde estão as mulheres?’’ pode nos levar a pensar sobre profissões do cinema que não vemos personificadas em tela, como o roteiro, a direção, a cinematografia, a composição. Nos últimos anos, essas questões estão mais em pauta na internet, mas eu acredito que ainda se fala muito pouco sobre elas. Quando pensamos em mulheres no cinema, estamos, sobretudo, centrados apenas no protagonismo.
É claro que pensar na mulher protagonista nos leva a inúmeras questões: há desigualdade salarial, há falta de oportunidades. Não estou tentando relativizar as problemáticas que existem e precisam ser solucionadas quanto a isso, mas é minha intenção que foquemos em uma profissão que apresenta ainda mais a ausência de mulheres, que é a direção. É o meu objetivo que a discussão sobre a figura da mulher no cinema possa estar além da representação e da presença feminina que vemos em tela. Afinal, a presença feminina na tela também é um resultado de uma criação que é feita por profissões que estão detrás dela, profissões que, quando analisadas a partir de gênero, apresentam resultados desequilibrados.
Vamos voltar a 2023, o ano em que Barbie não apenas foi o maior sucesso de bilheteria do ano, mas também colocou Greta como a diretora feminina que mais arrecadou na história do cinema. Isso significa uma vitória para a direção feminina? Para mulheres? Bom, como sou uma historiadora de formação, sou fiel ao ideal de que só o tempo será capaz de nos apresentar uma resposta.
Se o impacto de Barbie ainda é impreciso, porque cito o filme e evidencio justamente o ano de 2023? Simples: pelos seus resultados. Se, por um lado, temos um feito impressionante com Barbie, por outro, o ano foi de queda. De acordo com a pesquisa do Centro para o Estudo das Mulheres na Televisão e no Cinema da Universidade de San Diego, 2023 teve apenas 16% de mulheres como diretoras dos 250 filmes de maior bilheteria. Foi uma queda em relação aos 18% registrados em 2022. Em uma presença mais ‘‘geral’’ (direção, roteiro, produção executiva, edição e cinematografia), os números também apresentaram uma queda, as mulheres são apenas 22%.
Essa é uma longa introdução, eu sei. Mas eu quero levantar todos esses pontos para, partindo do nosso presente, pensarmos no lugar da mulher na direção em uma projeção histórica. Atualmente, temos a impressão de que a sétima arte está mais aberta a vozes femininas, mas como o cinema e as mulheres chegam a esses 22% em 2023? Como era isso antes? Não existiam filmes realizados por mulheres?
Primeiro Cinema: O cinema de Atrações (1894-1906) e o Cinema de Transição (1906-1915)
Essa é a primeira fase ‘‘oficial’’ do cinema, mas um cinema que não nasce como uma arte, que ainda não possui uma linguagem própria. Flávia Costa, ao debater sobre esse primeiro cinema, ressalta que os filmes surgiram como uma demonstração do que um cinematógrafo poderia fazer.
Em um primeiro momento, durante a primeira fase do cinema de atrações, predominou-se um cinema documental (Os irmãos Lumière filmando trabalhadores saindo da fábrica, um trem chegando à estação) e por volta de 1903, os filmes se tornaram ficcionais. Já a partir de 1907, o cinema começa a organizar-se (ampliam-se as produtoras, criam especializações de trabalho) e, assim, também se inicia a elaboração de uma linguagem específica.
Costa possui um ótimo capítulo de livro em português sobre O Primeiro Cinema, no entanto, seu capítulo no essencial ‘‘História do Cinema Mundial’’ de Fernando Mascarello (org.) apresenta uma lacuna. Não quero condená-la por isso, mas quero me apropriar de um silêncio, este que dificilmente é culpa da autora e sim da produção acadêmica anterior, para introduzir Alice Guy-Blaché.
Alice Guy-Blaché é a primeira cineasta mulher da história e inicia sua produção durante o período do cinema de atrações. Na época, ela era secretária de Léon Gaumont, um engenheiro e fabricante de câmeras. Alice, ao assistir uma apresentação dos Lumiére, percebeu que poderia fazer algo melhor com a invenção. Filha de vendedor de livros e com curso de teatro amador, ela pediu a Gaumont que pudesse filmar algumas cenas. Desse experimento de Alice em um momento onde os filmes eram apenas registros de acontecimentos, surge o primeiro filme ficcional da história. Dito isso, preciso ressaltar com muita clareza: Alice não é apenas a primeira cineasta mulher, ela é a pioneira (entre homens e mulheres) a realizar um filme no qual conhecemos e consumimos até hoje: o que conta uma história.
Alice não foi a única cineasta da época. Porém, antes de abordarmos isso, vamos dar um salto nessa projeção, afinal, ela chega aos Estados Unidos e cria um estúdio de cinema nos anos finais da última fase do Primeiro Cinema. Nessa época, uma outra mulher era dona de um estúdio por lá. Mas vamos deixar para falar de Lois Weber e uma incrível safra de mulheres diretoras/roteiristas na próxima fase.
A Ascensão de Hollywood: Idade do Cinema Industrial (1916-1930)
Entre 1910 e 1920, as mulheres representavam 50% das pessoas que trabalhavam com produção cinematográfica. Chocante, não?
Em 1910, Alice era dona de um estúdio, o Solax Studios. Ele deu tão certo que em 1912 se expandiu para uma antiga fábrica em Nova Jersey que se tornou um complexo lugar de produção cinematográfica (com laboratórios, salas escuras, cenários) simplesmente para atender as demandas do público. Alice, como os números mencionados anteriormente já indicam, não era a única mulher bem sucedida.
Tão memorável quanto Alice, temos Lois Weber, a primeira cineasta estadunidense e diretora mais bem paga do cinema mudo. Em 1917, após dirigir centenas de filmes, inclusive para a Universal, ela criou a Lois Weber Productions, seu próprio estúdio de cinema. Weber era uma progressista e decidiu fazer seus filmes exatamente desse jeito: ela não poupou temas polêmicos, como pobreza, aborto, vícios e pena de morte, assim como a nudez em tela. Tanto é que Shelley Stamp observa que seus filmes foram extremamente populares ao mesmo tempo que controversos. A historiadora afirma que Weber ‘‘(…) consolidou sua reputação como uma diretora de primeira linha e, mais importante, inaugurou um modo de cinema progressista que ia contra a tendência geral da indústria’’.
O cinema da época teve mais diretoras brilhantes além de Alice e Weber, como Ida May Park, que concordava com ambas supracitadas sobre mulheres serem mais adequadas para dirigir um filme. Karen Ward Mahar nota que boa parte dessa safra de diretoras ocorreu pela promoção, de roteiristas para diretoras. De acordo com a autora, para estúdios como a Universal, era lucrativo ter mulheres trabalhando, afinal, o orçamento de suas produções era baixo, oferecendo risco mínimo caso ocorresse um fracasso de bilheteria.
Esse cenário, no entanto, se modifica, a Primeira Guerra Mundial, o declínio da produção cinematográfica em solo Europeu e a atração de grandes empresários para os pequenos estúdios de Hollywood limitaram oportunidades para cineastas mulheres. Afinal, com muito dinheiro envolvido, não poderiam mais confiar em mulheres para realizar filmes. Assim as cineastas foram desaparecendo.
Cenário Europeu e Raras Exceções (1930-1970).
Falando brevemente sobre o cenário Europeu em uma projeção cronológica, é interessante como mulheres na produção europeia também possuíam a mesma (ou até mais) liberdade que no cenário estadunidense. Ainda durante o período do cinema mudo, além de Guy, outras cineastas como Germaine Dulac e Marie Epstein foram importantes para o cenário. Sobre Dulac, eu recomendo muito A Sorridente Madame Beudet (1922), cunhado como um dos primeiros filmes feministas da história.
Com a chegada do cinema falado, assim como a compressão da sétima arte como um recurso para manifestação política/ideológica, Leni Riefenstahl será responsável por dirigir filmes para o Partido Nazista e também por produzir um documentário sobre os Jogos Olímpicos de Verão de 1936. Como Sandra Machado aponta, Triunfo da Vontade, um filme de propaganda pró-Hitler, foi considerado, ‘‘(…) juntamente com O Encouraçado Potemkin (Sergei Eisenstein, 1925) como as obras master de propaganda jamais realizadas, ou repetidas, é descrito com uma ‘maravilha visual, sensual, cinética e cinematográfica’’ (MACHADO, 2018, p.14).
Já que a Alemanha está em foco, vale uma menção para Leontine Sagan. Ainda é incerto se Sagan nasceu na Áustria ou Hungria, mas, de todo modo, ela se mudou para Alemanha e em 1931, lançou o clássico Garotas de Uniforme. Por ser ambientado em um internato feminino, o elenco é totalmente composto por mulheres. E, além disso, fala abertamente sobre homossexualidade, afinal, a protagonista do filme é apaixonada por sua professora. Há, inclusive, uma cena de um beijo entre ambas na produção. O filme enfrentou problemas na Alemanha nazista, sendo banido pelo Ministro da Propaganda do Reich, ao mesmo tempo que, nos Estados Unidos, foi considerado o melhor filme internacional daquele ano.
Outra diretora extremamente popular é Agnès Varda. Nascida na Bélgica, Varda foi precursora da New Wave francesa. Varda possui uma carreira que transita (e muitas vezes mescla) filmes de ficção com não-ficção. Responsável pela icônica frase ‘‘Eu tentei ser uma feminista alegre, mas estava com muita raiva’’, ela buscou compor um estilo próprio de cinema (dentro da lógica do cinema de autor), mas sem se esquivar de temas políticos que a interessavam, principalmente no que se refere ao direito das mulheres. Assim, ela abordou questões sobre trabalho, maternidade, sexo, aborto e criou grandes obras. Além de Cléo de 5 à 7 (1962), As Duas Faces da Felicidade (1965), Cleo também dirigiu Saudações, Cubanos! (1963), Os Panteras Negras (1968). E já depois da década de 1970, dirigiu Mulheres: Nosso Corpo, Nosso Sexo (1975), Uma Canta, a Outra Não (1977) e os Os Renegados (1985).
Nos Estados Unidos, Ida Lupino foi a única mulher a dirigir filmes em Hollywood durante o imediato pós-guerra (1945-1964). Antes de se tornar diretora, Lupino foi atriz, mas sempre se demonstrou descontente com seus papéis. Para Lupino, Hollywood se tornou uma das instituições sociais opressivas a mulher, pois havia a objetificação pelo lucro através da superficialidade das personagens. Em 1942, ela afirmou que gostaria de apenas produzir e escrever filmes.
Em 1949, junto de seu marido, Lupino fundou a produtora independente The Filmmakers. De 1949 a 1954, dos doze filmes produzidos, Lupino dirigiu ou codirigiu seis deles, co-escrevendo cinco, atuando em três e co-produzindo um. Therese Grisham e Julie Grossman chamam atenção para o tipo de filme que estava sendo produzido na The Filmmakers. Lupino se inspirava em cineastas modernistas como Fritz Lang, Orson Welles, Roberto Rossellini e Alfred Hitchcock, desse modo, os filmes estavam vinculados ao novo realismo americano e a ‘‘filmes de mensagem’’. Temas controversos para a época estiveram presentes, como a maternidade de uma mãe solteira, estupro e bigamia. Lupino, se inspirando muito nos cineastas do realismo/documentário europeu, explorou temas tabus, a futilidade humana e, por fim, o fracasso do Sonho Americano. (GRISHAM, GROSSMAN, 2017, p.1-8,). Lupino também foi a primeira mulher a dirigir um filme Noir, ‘‘O Mundo Odeia-Me’’ com elenco totalmente masculino, além de se inspirar num caso real sobre um assassino em série, desafia a heteronormatividade.
No Japão, Tanaka Kinuyo realizou seis filmes entre 1953 e 1962. Antes de ser realizadora, assim como Ida Lupino, ela também era atriz, considerada uma das mais importantes da história do cinema japonês. Ayako Saito afirma que a mesma credibilidade como atriz não foi possível enquanto diretora, seus filmes foram menosprezados pela crítica. A autora argumenta que existem dois argumentos que levaram a Kinuyo não ter um seu talento reconhecido por trás das câmeras. O primeiro era que ela, além de mulher, era também uma atriz e, na produção cinematográfica do Japão, os status dos atores eram baixos, enquanto os diretores estavam no topo da hierarquia. Os críticos (homens, em grande maioria) argumentaram que sua ida para a direção estava associada ao declínio da carreira por estar envelhecendo e, portanto, estar recebendo menos oportunidades. Em segundo lugar, estava a falta de um estilo visual, a simplicidade de seus filmes foi bastante criticada. Evidencio aqui, principalmente, uma passagem de Ayako sobre as questões centrais que inviabilizaram o cinema de Kinuyo: ‘‘Sexismo, ageismo e hierarquias profissionais definitivamente fundamentaram a depreciação geral de Tanaka como cineasta legítima’’ (SAITO, 2018, p.127).
Mesmo com uma filmografia tão pequena, os filmes foram diversificados. Assim como Saito, Irene Gonzáles-López e Ashida Mayu também afirmam que as características formais do cinema de Kinuyo não formavam uma unidade que pudesse caracterizar seu cinema. Mesmo com tal implicação, as autoras apontam que um dos pontos mais coesos de sua filmografia era a preocupação com o gênero e a experiência da feminilidade. Ela abordou temas como centros de reabilitação forçada para ex-prostitutas, câncer de mama e relacionamentos inter-raciais (GONZÁLEZ-LÓPEZ, MAYU, 2018, p.114).
Na América Latina, cabe destacar o trabalho de Vlasta Lah, a primeira mulher a dirigir filmes com som no cinema argentino, assim como a única a dirigir filmes na América Latina durante a década de 1960. Martín Miguel Pereira e Candela Vey registram que Vlasta trabalhava como assistente de direção desde 1943. Quando a crise do sistema ocorreu no cinema Argentino, seu marido, Catrano Catrani, começou a dirigir filmes de maneira independente, criando, assim, a Catrano Catrani Producciones. Com o sucesso do filme independente de Catrani, Alto Panamá, o triunfo possibilitou que Vlasta dirigisse seu primeiro longa-metragem, As Fúrias (1960), um drama que envolve cinco mulheres. Em 1963, ela também dirigiu As Modelos.
Cineastas entre 1970 e o Cinema Contemporâneo
A segunda onda do feminismo nos Estados Unidos contribuiu para uma mudança significativa na indústria do cinema. Uma vez que a nova fase do feminismo foi marcada pela reivindicação da libertação das mulheres, onde alguns dos tópicos eram a igualdade laboral e desigualdade de gênero, as mulheres decidiram levar suas pautas para os filmes. Primeiro, de maneira independente e, posteriormente, na própria indústria, voltando a obter controle de suas próprias narrativas. Como resume Gabi Baltzell, ‘‘As cineastas mulheres e suas novas oportunidades de contribuição artística abriram muitas portas. Eles abriram novos caminhos para permitir maior exposição e discurso sobre os problemas que as mulheres enfrentavam na época e como elas queriam ser percebidas.’’
A partir da década de 1970, é possível notar a presença de mais mulheres na direção. No entanto, nesse tópico, não vou abordar o cinema feminino produzido nos Estados Unidos, Europa, Oceania ou no Oriente. Opto por deixar esses territórios e continentes de fora devido a ‘‘popularidade’’ e a maior possibilidade de acesso a nomes femininos pertencentes a tais locais. Dessa forma, focaremos em locais não mencionados ao longo do texto: como o continente africano, o oriente médio e o cinema sul-americano.
Continente Africano
Nascida na França, mas atuando na África, Sarah Maldoror foi uma das primeiras mulheres a dirigir um longa-metragem no continente. Casada com Mário Pinto de Andrade, ativista político que foi presidente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e participante ativa da luta de libertação africana, seu primeiro filme foi Sambizanga (1972), produção inspirada no conto ‘‘A Vida Verdadeira de Domingos Xavier’’. Gravado em Angola e sobre os conflitos acerca do processo de descolonização do país, o filme levantou um debate sobre as atrocidades e violências que marcam a luta armada contra a ocupação portuguesa.
Destaco Sambizanga principalmente pelo ponto de vista adotado no filme. Por mais que a história seja sobre Domingos Xavier, um ativista revolucionário angolano que foi detido pela polícia portuguesa e torturado até entregar seus colegas pró-independência, a protagonista do filme é Maria, esposa de Domingos. Maria, no entanto, não protesta e luta pela libertação de seu marido completamente sozinha, em suas costas e, às vezes, em seus braços, está o filho pequeno do casal.
Ainda no continente africano, nomes recentes vêm atraindo atenção. Em Senegal, Mati Diop (sobrinha do diretor Djibril Diop Mambéty), é um nome do cinema feminino que eu particularmente tenho muito interesse. Diop dirigiu Atlantique (2019), um drama com tons de fantasia sobre crise econômica e imigração em Senegal. O filme ganhou o prêmio Grand Prix em Cannes em 2019 e foi relacionado por Senegal para representar o país na 92ª edição do Oscar. O drama não conseguiu a indicação em Melhor Filme Internacional, mas chegou à lista de finalistas pré-selecionados. Este ano, no Festival Internacional de Cinema de Berlim, ela lançou o documentário Dahomey, um filme que aborda os vinte e seis artefatos do Reino de Daomé (1600-1904), que foram devolvidos à Benin pela França. Com essa obra, Mati ganhou o Urso de Ouro, prêmio mais importante da competição.
No Quênia, destaco o trabalho de Wanuri Kahiu. Seu filme mais famoso é Rafiki. A produção é inspirada no conto Jambula Tree, da autora ugandense Monica Arac de Nyeko. Primeiro filme queniano a ser exibido em Cannes, o longa conta a história de duas meninas que se tornam grandes amigas, apesar da rivalidade política de suas famílias. A amizade vira um romance, mas há um grande problema nessa nova etapa da relação: no Quênia, a homossexualidade é crime e a punição são catorze anos de prisão. Sobre a produção, além do Quênia negar o financiamento para o filme, o governo também proibiu a estreia no país, justificando que a temática homossexual tinha ambição de promover o lesbianismo. O governo, antes do feito, pediu para que Kahiu mudasse o final positivo e feliz do filme para um final mais apropriado às leis e valores do país, pedido que a diretora negou. Dessa forma, a proibição ocorreu, no entanto, na justiça, ela conseguiu que o filme fosse exibido por sete dias no cinema, período necessário para poder representar o Quênia no Oscar.
Na Tunísia, Kaouther Ben Hania possui grandes obras. A mais famosa, é o ótimo O Homem Que Vendeu Sua Pele, indicado a Melhor Filme Internacional em 2021. No entanto, destaco a obra-prima A Bela e os Cães (2017), filme também selecionado pela Tunísia para concorrer ao Oscar. O filme é baseado em fatos, e conta a história de uma jovem que precisa denunciar um crime de estupro, mas nos hospitais e delegacias que busca ajuda, apenas encontra indiferença, hostilidade e impedimentos burocráticos. Recentemente, Ben Hania lançou Quatro Filhas (2023), filme que concorreu à última edição do Oscar em Melhor Documentário.
Oriente Médio
Na Turquia, Deniz Gamze Ergüven, que trabalhou posteriormente na série O Conto da Aia, dirigiu Cinco Graças (2015). Cinco Graças retrata a vida de cinco irmãs adolescentes sufocadas pelo conservadorismo do lugar onde moram. O filme é uma coprodução entre a França, Alemanha e Turquia, fez sucesso em Cannes e foi selecionado para representar a França na 88ª edição do Oscar em Filme internacional.
Na Palestina, Farah Nabulsi é um nome muito promissor. Nascida em Londres, mas filha de pais palestinos, Nabulsi tem uma série de produções sobre o país, como Pesadelo em Gaza (2018), O Professor (2023) e O Presente (2020). Devido a dificuldade de acesso a produções da diretora, destaco aqui a obra mais acessível que é O Presente. O filme foi lançado pela Netflix e conseguiu uma indicação ao Oscar na categoria de Melhor Curta-metragem. A história é sobre um pai e uma filha que, em meio a invasão de Israel na Cisjordânia, tentam comprar uma geladeira como presente de aniversário para a matriarca da família. Juntos, eles partem até o Checkpoint 300, um ponto de controle de Israel próximo a Belém, e a demora para conseguirem adentrar nos locais dominados por Israel é a primeira de uma série de dificuldades enfrentadas.
Haifaa al-Mansour é a primeira diretora mulher da Arábia Saudita. Da breve lista construída aqui, provavelmente seus trabalhos são os mais conhecidos, afinal, ela realizou produções britânicas e estadunidenses como Mary Shelley (2017) e Felicidade Por um Fio (2018). Seu último filme é A Candidata Perfeita (2019), um drama sobre uma jovem médica saudita que aceita ser a primeira candidata mulher em uma eleição municipal em sua cidade.
América do Sul
Anna Muylaert é um nome essencial do nosso cinema nacional. Seu filme mais famoso é o ótimo Que Horas Ela Volta? (2015), estrelado por Regina Casé. Ela também dirigiu O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), produção sobre a ditadura militar através da perspectiva inocente de uma criança. Porém, gostaria de destacar seu filme de estreia, Durval Discos (2002). O filme conta a história de Durval, um dono de loja de discos que ainda mora com a mãe. Devido a exaustão da mesma, Durval contrata uma empregada por 100 reais ao mês. No entanto, a empregada desaparece, mas antes deixa uma menina sob cuidado de ambos. Durval Discos é engraçadíssimo, possui tons surrealistas e um final surpreendente.
Tão importante quanto Anna Muylaert é Lúcia Murat. Seus filmes são fortemente influenciados pelo seu passado como integrante da luta armada contra a ditadura militar brasileira. Destaco o documentário Que Bom Te Ver Viva (1989), um filme que narra a vida de mulheres que pegaram em armas contra o regime.
No gênero terror, o novíssimo cinema brasileiro apresenta diretoras de grande talento. Cito primeiramente Juliana Rojas. Como terror é meu gênero cinematográfico favorito, faço uma dupla indicação: Primeiro, o filme de terror/fantasia/musical Sinfonia da Necrópole (2014), que conta a história de um aprendiz de coveiro que não quer trabalhar no ofício, até que se apaixona por Jaqueline, funcionária do serviço funerário. O segundo filme é As Boas Maneiras (2017). Estrelado por Marjorie Estiano, a produção evoca uma de nossas principais lendas folclóricas, a do lobisomem. Particularmente, eu não gosto do rumo que o filme toma após o nascimento do menino lobo, mas acho seu primeiro ato simplesmente uma das maiores construções narrativas já vistas na história do cinema brasileiro.
Outro nome do terror é Anita Rocha da Silveira. Destaco também duas obras da diretora: Mate-me, Por Favor (2015) e Medusa (2021). O primeiro fala sobre um serial killer que atua na Barra da Tijuca e está aterrorizando os adolescentes do bairro. O segundo aborda uma questão super contemporânea no nosso país, que é a influência das igrejas neopentecostais no cotidiano dos jovens.
Por fim, cito Carolina Markowicz, talvez a principal aposta do cinema do Brasil no campo internacional. Particularmente, considero Carvão (2022), uma obra-prima do cinema nacional e indico profundamente. Também indico seu último filme chamado Pedágio (2023). Pedágio fala sobre uma mulher que trabalha como cobradora e gasta parte do seu dinheiro para enviar seu filho para um tratamento de cura gay.
Agora, vamos a Cuba para falar de Sara Gómez. Entre 1960 e 1974, o ano de sua morte (aos 31 anos devido a complicações de uma crise asmática), Sara foi a única mulher a atuar no Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica. Seu único longa-metragem é De Cierta Manera, uma produção que conta a história de uma professora de classe média que se apaixona por um operário de fábrica, mas a relação é desafiada por suas diferentes visões, valores e preconceitos. No Filme Saudações, Cubanos! Produção de Varda que já mencionei anteriormente, Sara Gómez foi roteirista.
Na Argentina, Lucrécia Martel é uma diretora indispensável. Recomendo dois filmes: O primeiro é O Pântano (2001), seu longa-metragem de estreia. Uma obra-prima moderna, o filme acompanha uma família de burgueses que passa o verão em uma casa de férias na província de Salta, Argentina. Com a casa repleta de familiares, não demora muito para que os nervos de figuras chaves da família sejam aflorados, expondo, assim, mistérios e tensões reprimidas que estão constantes ameaçando uma onda de violência. O segundo filme que indico é A Menina Santa (2004), outro filme igualmente visceral. Nesse filme, Lucrécia troca a burguesia por um outro tema ‘‘tabu’’ que é a religiosidade. Desta maneira, a produção centra-se em Amália, uma jovem extremamente católica que está entrando na puberdade.
Considerações Finais
No presente texto, utilizei da problematização de uma situação atual para retornar ao passado e, assim, construir uma breve história da mulher na direção. Assim, foi possível compreendermos que a partir da entrada do capital massivo na fomentação dos filmes, a mão de obra feminina, que era metade de Hollywood, por exemplo, diminuiu drasticamente. Dessa maneira, até a década de 1970, as mulheres cineastas com posições e filmes de destaque foram poucas. Com a chegada da segunda onda do feminismo, o cinema ‘‘indie’’ e o lento retorno aos grandes estúdios, o cenário foi modificado positivamente. Porém, como vimos na introdução do texto, ainda há muito o que melhorar.
* Pesquisadora em História dos Estados Unidos e História da América, vinculada a Universidade Federal Fluminense (UFF) – Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional (ESR); Pólo Universitário de Campos dos Goytacazes, RJ (PUCG/UFF). Contato: sthefaniyhenriques@id.uff.br.