A Hora da Estrela (Crítica)

A hora de um clássico do cinema brasileiro voltar a brilhar

Por Leonardo Lima*

Quarenta anos após o seu lançamento em 1984, A Hora da Estrela, clássico do cinema brasileiro, volta às telas do cinema remasterizado em versão digital, algo que auxilia a resgatar em toda a sua intensidade a qualidade técnico-estética da obra tal como originalmente concebida pela diretora Suzana Amaral. Vale salientar que esse trabalho de preservação do patrimônio cinematográfico nacional é uma iniciativa possível graças a Petrobrás e a Vitrine Filmes, que, juntas, têm patrocinado a conservação da história da nossa sétima arte através da Sessão Vitrine Petrobrás.

Baseado em um dos mais célebres romances da escritora Clarice Lispector, A Hora da Estrela desde os minutos iniciais evidencia através dos detalhes o olhar feminino sobre os acontecimentos envolvendo sua protagonista, a jovem Macabéa, nordestina que trabalha como datilógrafa em São Paulo – cidade esta que, já nos anos 1980, se mostrava como uma zona centrípeta de atração de pessoas das mais variadas regiões do Brasil.

A direção de uma mulher certamente faz toda a diferença aqui, uma vez que imprime às ações e aos pensamentos de Macabéa um caráter introspectivo muito próprio à literatura de Lispector, nas quais o universo das mulheres é trazido à tona com sensibilidade criativa sociologicamente fundamentada, sem apelar para uma construção errônea sobre o que significa ser uma mulher na sociedade. Macabéa, com seus 19 anos, virgem e apreciadora de Coca-Cola, é apresentada sob o viés da subjetividade, de modo que, ao se admirar num espelho, num dos planos mais lindos e sutis de todo o filme, é como se ela estivesse a desnudar momentaneamente o “espírito” frente aos espectadores. O mais interessante é que essa cena se passa bastante cedo, quando mal tivemos tempo para conhecer a personagem; todavia, o tom quase sobrenatural de Marcelia Cartaxo ao dar vida à Macabéa nos revela em uma só mirada quem verdadeiramente é aquela doce, ingênua e sonhadora garota.

O primeiro ato de A Hora da Estrela, quando a narrativa se debruça sobre o dia a dia de Macabéa na metrópole paulistana e sua convivência tanto no escritório no qual trabalha como no cortiço onde compartilha um quarto com mais três mulheres, é de um primor cinematográfico único, pois há os desdobramentos cênicos possíveis a partir dessa abordagem mais intimista, explorando-se as nuances da complexidade constitutiva da personagem, dividida entre viver segundo os padrões societários conservadores que lhes foram ensinados desde nova e o desejo de explorar as possibilidades das delícias oferecidas pelo mundo ao seu redor, incluindo a sexualidade.

Percebe-se, no entanto, uma perda da força narrativa a partir do instante em que a trama foca no relacionamento de Macabéa com Olímpico de Jesus (José Dumont), rapaz também nordestino que ela conhece por acaso em São Paulo. Não que a dinâmica envolvendo os personagens seja frágil; muito pelo contrário, ainda mais se considerarmos os rompantes de violência de gênero e irresponsabilidade afetiva protagonizados por Olímpico sempre que os dois estão juntos – tem-se, aqui, um panorama até certo ponto cru da toxicidade vivenciada cotidianamente por tantas mulheres em seus relacionamentos amorosos. O problema reside, na verdade, na ruptura parcial da mise-en-scène até então estabelecida, algo que acontece devido ao deslocamento havido quanto à abordagem, que deixa de priorizar o subjetivismo de Macabéa para centralizar na interpessoalidade daquela relação, cuja redundância de situações encenadas leva a um certo cansaço com frente à história.

De todo modo, há de se reconhecer que, àquela altura histórica, A Hora da Estrela se mostrava como um filme ousado, não apenas por trazer como protagonista uma mulher retratada a partir do olhar de outra mulher e considerando as particularidades sócio-históricas de existência das mulheres, mas também pela maneira como desenvolve os elementos estéticos e narrativos de seu edifício cinematográfico. Definitivamente, uma obra que merece ser (re)vista nos cinemas. 

Agradecimentos à Sinny Comunicação e à Vitrine Filmes pelo convite para a cabine de imprensa.

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*Recifense, 38 anos, sociólogo, aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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