Por Leonardo Lima*
Mesmo contando com o suporte idiomático do inglês, cuja difusão a nível mundial crescia à medida que o século XX avançava, o cinema feito na Grã-Bretanha jamais esteve perto de ter alcance internacional similar àquele produzido no outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, seja porque não havia abundância de recursos para financiar as obras, como na América, seja porque não existia no país um polo produtor em escala industrial, como era o caso de Hollywood.
De todo modo, a sétima arte logrou considerável êxito por lá, deixando como legado os filmes da Escola Britânica de Documentários ou de cineastas como Alfred Hitchcock (em sua fase inglesa), David Lean, Tony Richardson, John Schlesinger, Ken Loach, Mike Leigh, entre outros. Para Martin Scorsese, alguns dos melhores e mais sublimes momentos do cinema britânico foram protagonizados por Michael Powell e Emeric Pressburger – este último um húngaro ali radicado após escapar da Alemanha numa época em que o processo descivilizatório nazista começava a se espraiar. No recém-lançado Feito na Inglaterra: os filmes de Powell e Pressburger, documentário dirigido por David Hinton, o aqui produtor e narrador Scorsese encontra a oportunidade perfeita para resgatar, com boa dose de pessoalidade, a história da parceria envolvendo essa dupla, que, por quase duas décadas, levou às telas obras definitivamente inventivas e únicas que marcariam a vida do então garoto nova-iorquino, a ponto de moldar a sua visão sobre o próprio fazer cinematográfico.
Há de se convir que, em termos de direção, Feito na Inglaterra não traz quaisquer novidades no uso da linguagem cinematográfica, ainda que se trate de um trabalho bastante afiado quanto à montagem, permitindo ao público não apenas acessar minuciosa e cronologicamente os trabalhos realizados em conjunto por Powell e Pressburger, em especial aqueles feitos graças à lendária produtora The Archers, mas, também, entender a maneira como cada obra dirigida por ambos influenciou o olhar de Scorsese quando veio, ele próprio, a se tornar cineasta nos anos 1960.
É muito gratificante poder fazer um mergulho guiado dessa natureza, uma vez que nos possibilita conhecer filmes de épocas passadas que, muito provavelmente, sequer saberíamos de sua existência e importância no contexto em que foram produzidas, e, ainda, compreender, com riquezas detalhes, o que está por detrás da gênese conceitual de projetos os quais levamos conosco em nosso cânone sagrado cinéfilo, obras-primas atemporais como Táxi Driver e Touro Indomável. Nesse sentido, a narrativa em primeira pessoa de Scorsese é o fio condutor que confere a Feito na Inglaterra: os filmes de Powell e Pressburger uma aura de charme e deslumbre intimistas, capaz de nos seduzir por intermédio de cenas exibidas analiticamente, imagens de arquivo e depoimentos colhidos juntos aos cineastas homenageados.
Trata-se de uma viagem no tempo que funciona tanto para quem já conhece a filmografia de Michael Powell e Emeric Pressburger como para quem pouco ou nada assistiu de seus filmes – Coronel Blimp: Vida e Morte (1943), A Canterbury Tale (1944), Sei Onde Fica o Paraíso (1945), Neste Mundo e no Outro (1946), Narciso Negro (1947), Os Sapatinhos Vermelhos (1948), De Volta ao Pequeno Apartamento (1949), Os Contos de Hoffmann (1951), A Batalha do Rio da Prata (1956) e alguns outros. Mais uma vez, Martin Scorsese presta um serviço de incomensurável relevância para a preservação da história do cinema, porquanto, de maneira justa e lúcida, traz à baila, para a atual geração cinéfila, obras dirigidas por uma dupla que, apesar de apenas tardiamente ter reconhecida a sua importância, mostrou-se essencial ao propor um cinema genuinamente britânico ao mesmo tempo clássico e moderno, capaz de lotar salas fazendo frente àquilo produzido em Hollywood no mesmo período.
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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!