CAMINHOS CRUZADOS

Uma Istambul oculta revela a eterna busca identitária dos indivíduos numa obra-prima contemporânea

Por Leonardo Lima*

NOTA: 9,0

Dividida entre a Europa e a Ásia, às margens do Estreito de Bósforo, Istambul é uma das cidades mais icônicas de toda a história. Chamada anteriormente de Bizâncio e Constantinopla, seu nome atual foi dado pelos turcos otomanos, significando “na cidade”, “à cidade” e/ou “centro da cidade”. Tais nomes se fazem muito apropriados para uma cidade que, ao longo dos tempos, exerceu influência ímpar devido à sua privilegiada localização geográfica. Atualmente, sua condição glocal (isto é, de cidade cuja configuração espaço-social reúne, simultaneamente, características da globalização e dos tradicionais arranjos locais) continua a fazer dela um lugar em que povos e pessoas tão diferentes entre si equilibram-se de maneira instável, porém paradoxalmente consistente e duradoura.

A despeito de toda essa heterogeneidade, o imaginário construído em torno de Istambul, particularmente no Ocidente, não costuma fugir àquilo endossado pela doutrina islâmica sunita, a vertente mais moderada da fé monoteísta fundada pelo profeta Maomé no século VII. Sendo assim, minorias cujas concepções e práticas confrontam as leis sagradas do Alcorão veem-se continuamente submetidas ao apagamento social, invariavelmente realizado com base no uso da violência, seja ela física e explícita, seja simbólica e tácita. Em Caminhos Cruzados, o cineasta sueco (de origem turca) Levan Akin faz um movimento contrário, pautado pela estética da empatia, no intuito de evidenciar a comunidade queer de Istambul, historicamente invisibilizada, mas aqui representada em toda sua força de resistência coletiva.

Nação vizinha à Turquia, a Geórgia é o ponto de partida da história de Caminhos Cruzados. Ao saber que sua sobrinha desaparecida, uma jovem garota trans chamada Tekla, havia partido rumo a Istambul, a professora aposentada Lia (Mzia Arabuli) decide ir atrás dela, contando com a ajuda de Achi (Lucas Kankava), jovem de coração bom porém sem amarras nem grandes objetivos na vida. Com pouco dinheiro, mas um raro senso de cooperação mútua, os dois cruzam a fronteira. Enquanto acompanhamos a busca de ambos por Tekla, somos apresentados a Evrim (Deniz Dumanli), mulher trans de personalidade que faz do diploma de advogada o seu instrumento de luta em prol de outras garotas trans residentes nas profundezas ocultas de Istambul, em sua maioria tendo na prostituição a sua única fonte de sobrevivência.

Em termos estéticos e narrativos, o filme remete em certa medida ao neorrealismo italiano, uma vez que a direção de Levan Akin privilegia planos que trazem consigo uma representação mais objetiva e crua da realidade social, com poucos apelos voltados para uma estilização da imagem. Isso é de vital importância, pois ao mesmo tempo que nos possibilita vivenciar o pulsar frenético das ruas da cidade juntamente com as personagens, também permite o compartilhamento de emoções vividas por elas durante suas andanças. Aqui, a câmera funciona como um dispositivo de conexão emotiva do público com o trio de protagonistas, cada qual em uma fase diferente da vida, e, portanto, tão distintos uns dos outros sob uma perspectiva geracional, contudo igualmente desejosos de encontrar o seu lugar no mundo, ainda que tenham de lidar com a rejeição social.

Também relevante em Caminhos Cruzados é a maneira como o roteiro deixa fluir com naturalidade os temas a que se propõe discutir, nunca permitindo que os aspectos mais políticos da obra sejam discutidos à luz de um panfletarismo discursivo, ou seja, antes vemos do que ouvimos da boca das personagens os problemas de ordem social que lhes afligem – e mesmo quando isso é feito mais diretamente, há um contexto no qual esse ativismo próprio à práxis das ideias é evocado com fins de reafirmar positivamente o que as imagens falam por si, sem quaisquer, parafraseando-se o dramaturgo Nelson Rodrigues, obviedades ululantes. Tal decisão criativa do diretor torna-se fundamental à medida que esse foco nas vivências desses corpos, em trânsito errante numa cidade que costuma negar o afeto àqueles que socialmente são vistos como outsiders, acaba servindo como elemento de fluxo narrativo a guiar seus caminhos, cruzados graças aos imponderáveis da vida, que teima em continuar a despeito de todas as dificuldades.

Com sua habilidade em construir uma narrativa que mescla, de maneira equilibrada, o contexto no qual suas personagens se inserem àquilo que diz respeito à dimensão subjetiva desses indivíduos, em particular seus anseios quanto à afirmação de suas identidades, perpassando, assim, a ideia de pertencimento social,  Levan Akin faz de Caminhos Cruzados não apenas um dos melhores filmes lançados neste ano, mas, também, uma obra-prima do cinema contemporâneo.

Título original: Crossing

Direção: Levan Akin

Ano de lançamento: 2024

País: Suécia / Dinamarca / França / Turquia / Geórgia

Duração: 106 minutos

Onde assistir: Mubi

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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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