TOURO INDOMÁVEL e a força da arte (Crítica)

Por Pablo Rodrigues*

A arte possui um potencial transformador sem igual. Sua capacidade de nos impactar é inegável. No entanto, algumas obras extrapolam seus limites e conseguem salvar vidas. No final da década de 1970, após o fracasso de público e crítica de seu filme NEW YORK, NEW YORK (1977), somado ao fim de um casamento, o cineasta Martin Scorsese, até então em ascensão, entrou numa depressão profunda e intensificou seu uso de drogas, chegando a ter uma overdose que o levou a se internar em uma clínica de recuperação. Durante este período, recebia a visita frequente de seu amigo, o ator Robert De Niro, que sempre levava um livro para o diretor, insistindo que ele deveria adaptá-lo para o cinema. Scorsese, um tanto desmotivado e após muita insistênciade seu amigo, aceitou dirigir o projeto, o qual iria não apenas salvá-lo de sua depressão, como também se tornaria uma das grandes obras-primas da sétima arte. O filme em questão era TOURO INDOMÁVEL (1980).

Baseado no livro homônimo, o longa narra a história real do pugilista Jake La Mota, com sua ascensão e queda no mundo do boxe, bem como sua vida privada conturbada devido à sua personalidade agressiva e autodestrutiva. Scorsese se jogou de corpo e alma neste trabalho e isso transparece na tela a cada frame. TOURO INDOMÁVEL é uma obra visceral que consegue, através do uso impecável de sua linguagem cinematográfica, impactar o público de maneira única.

A direção de Scorsese aqui atinge o seu ápice, conseguindo transmitir toda a energia e carga dramática exigida pela narrativa. Seu Jake La Mota é um típico personagem scorseseano, ou seja, um indivíduo repleto de falhas e contradições, com tantos defeitos que a princípio nos repele, no entanto, à medida que o longa nos força a acompanhá-lo de perto, vamos nos sentindo fascinados por este intrigante personagem, compreendendo sua complexidade. Muito do mérito disso vem do excelente roteiro escrito a quatro mãos por Mardik Martin e o genial Paul Schrader.

La Mota, assim como tantos outros protagonistas do cinema scorseseano, é um homem fruto do contexto sócio-histórico no qual estava inserido. Alguém que cresceu no subúrbio violento de Nova York, em uma época extremamente conservadora (anos 40), contexto que o fez usar da violência para sobreviver, tornando-se um verdadeiro touro tanto dentro quanto fora do ringue. Nesse sentido, TOURO INDOMÁVEL é um dos melhores exemplos da crítica à masculinidade tóxica presente na filmografia de Scorsese. Assim como tantos outros protagonistas de sua obra, Jake entra em decadência justamente por conta do seu machismo e da violência que isso traz.

E toda esta trajetória de ascensão e queda, de pecado e punição, faz um paralelo com a trajetória que o próprio Scorsese estava vivenciando naquele momento de sua vida. Não à toa o diretor filma sua obra com a mesma intensidade e fúria de seu biografado. E o resultado é simplesmente genial.

É impressionante,  por exemplo, a destreza de Scorsese na condução das cenas de boxe, visto que o diretor não entendia nada sobre o esporte à época. Utilizando como referência uma abordagem expressionista, o cineasta filmou cada uma das lutas de forma diferente, de modo a refletirem o estado emocional do protagonista em cada uma delas. Em uma, por exemplo, em que vemos Jake vencendo com facilidade, os planos são mais abertos, o ringue é maior, dando mais espaço ao personagem. Já em outro momento, quando o mesmo está numa luta cujo resultado está confuso, vemos a cena através de planos mais fechados e irregulares, com uma névoa tomando conta da imagem.

Outro elemento impecável é a montagem de Thelma Schoolmaker, que é um show à parte, conduzindo o ritmo das lutas como se fossem números musicais, transformando-as nas melhores cenas de boxe já vistas em filmes sobre o tema. Também é importante destacar o excelente trabalho de som, que utiliza sons não diegéticos (que não fazem parte do universo das cenas) durante as lutas, como de animais, para refletir a fúria dos personagens no ringue, bem como o ótimo uso do silêncio para criar a atmosfera de tensão das cenas.

Além desses elementos, vale destacar a ambientação do filme, que consegue emular com muita eficiência as décadas de 1940 e 1950, período no qual a trama se passa. Desde a trilha sonora com músicas da época até a maravilhosa fotografia de Michael Chapman, que traz um dos melhores usos do preto e branco já visto em um filme, com um ótimo uso expressionista dos contrastes.

Outra força motriz da obra é a atuação assombrosa de Robert De Niro que, na opinião deste crítico, é simplesmente a melhor de sua carreira, sendo premiada com o Oscar da categoria em 1981. O ator é uma força da natureza que consegue transmitir toda a impulsividade e complexidade de seu personagem sem cair no exagero ou na caricatura. Além dele, o filme também marca a primeira colaboração de outro grande ator com Scorsese e De Niro, a saber, Joe Pesci, iniciando uma parceria que ainda renderia outros ótimos trabalhos futuros, como OS BONS COMPANHEIROS (1990), CASSINO (1995) e O IRLANDÊS (2019). Pesci também está excelente no filme e sua química com De Niro já começa impecável aqui.

TOURO INDOMÁVEL é uma verdadeira aula de cinema. O melhor trabalho de Scorsese na opinião deste crítico e um dos melhores filmes já feito. Uma obra-prima arrebatadora, visceral, dirigida com maestria por seu diretor, tirando-o de sua depressão, provando assim que a arte não apenas consegue nos impactar, como também pode nos salvar.

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*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.

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