A Substância (Crítica)

Por Sthefaniy Henriques*

Junto a Titane (2021), A Substância apresenta um dos usos mais impressionantes do horror corporal desta época. O que me leva a pensar assim é justamente a maneira como o horror corporal se impõe como um recurso vital – e muito bem executado – para a narrativa e a história que busca contar.

Dirigido por Coralie Fargeat, também diretora do excelente Vingança (2017), A Substância faz abertamente o mesmo exercício de seu filme anterior: compreende a história de seu gênero cinematográfico, provoca suas estruturas e constrói algo novo, sem abandonar tudo o que foi feito anteriormente. Assim, se em Vingança, Fargeat dá uma nova visão aos filmes de rape-revenge, mas sem abandonar as mesmas mazelas dos filmes clássicos, em A Substância, Fargeat também beberá de duas fontes: uma primorosa para quem deseja realizar filmes com body-horror e outra mais ‘‘desconvencional’’ a sua abordagem. A primeira fonte trata-se, obviamente, do body-horror-sci-fi amplamente provocativo de David Cronenberg, em filmes como Scanners (1981), A Mosca (1986) e Crimes do Futuro (2023), já a segunda, refere-se ao ‘‘estranhismo’’ de David Lynch. Sobre esse último, é possível notar a influência de Cidade dos Sonhos (2001), de Eraserhead (1977) e O Homem Elefante (1980).

Com essa longa lista de possíveis inspirações, quero dizer que Fargeat cria uma abordagem que utiliza o horror corporal como um elemento que transcende o mero choque, explorando avanços científicos e sociais, e como esses experimentos podem falhar, gerando destruições que vão além de um corpo, de um indivíduo. No entanto, embora a construção siga essa linha, há espaço para o estranhismo e para uma crítica satírica a Hollywood, como em Cidade dos Sonhos, ao mesmo tempo que humaniza o corpo, reduzindo o sujeito passivo e oprimido por questões de aparência, como em O Homem Elefante.

Como já disse anteriormente, Fargeat se inspira, adota essas estruturas, no entanto, cria algo que é dela, que reflete muito mais uma personalidade própria, ao invés de um amontoado de inspirações que não criam uma unidade firme e coerente.  Desse modo, A Substância, com sua corajosa duração, também é um filme corajoso em intensificar tudo que pretende ‘‘condenar’’.

Como o filme trata, sobretudo, do etarismo e das chamadas ‘‘soluções milagrosas’’ para mulheres, consequências diretas do envelhecimento, algumas intensificações estão presentes na exibição do corpo nu. E quando me refiro ao corpo nu, falo de uma exibição corajosa e frontal, seja de um corpo no ápice de sua jovialidade ou de um corpo que está passando pelo processo de envelhecimento. Em ambos os casos, a câmera, a princípio, não adota um olhar condenatório. Não há razão para julgar uma mulher de meia-idade (principalmente quando essa mulher é Demi Moore), e, no entanto, também não há julgamentos para Sue, vivida por Margaret Qualley, e seu corpo gerado por computação gráfica. A câmera, em um campo neutro (o banheiro sem vida), parece transferir para o público a responsabilidade de julgar esses corpos, embora ela mesma passe a atuar diretamente quando a substância afeta o corpo de Elisabeth, promovendo graves alterações. Assim, quando o corpo da matriz está em cena, não é apenas o nu frontal que continua corajoso; a própria exibição do corpo da matriz transformado é, por si só, um ato de grande coragem.

Outro ponto que se destaca é a unidade estilística que se centra fortemente – e propositalmente – em uma abordagem repleta de estímulos. Genialmente, essa troca também ocorre com a mudança dos corpos. À medida que Elisabeth perde seu espaço na tela e Sue começa a ganhar protagonismo – e literalmente sua vida – , o filme, de uma maneira geral, se transforma. A mise-en-scene (aqui incluo a cenografia, maquiagem, figurino e iluminação) se torna mais viva, mais colorida, jovial e descolada. Há um rejuvenescimento na imagem e no som, evocando, inclusive, o ardor sexual por um corpo que precisou ser mudado para ser, novamente, desejado.

No entanto, não é apenas na mise-en-scene que esse estímulo está presente. A montagem do filme é bastante dinâmica, economizando principalmente nas partes ‘‘burocráticas’’ de aprender a usar e lidar com a substância. Abraçando tanto o conceito de ‘‘uma semana não é o suficiente’’ quanto do ideal da ascensão à fama,  há uma intensificação das sequências dos acontecimentos. Fora do banheiro, que funciona como campo neutro, tudo é apressado, passado em um ‘‘piscar de olhos’’. Essa abordagem de velocidade nos acontecimentos, reforça, inclusive, a motivação para Sue querer cada vez mais e mais tempo. Uma semana nunca é o suficiente para uma artista em ascensão e ela reconhece isso. Assim, o filme ganha espaço para que seus momentos mais calmos – mas não menos tensos e agonizantes –, em campo neutro,onde se questiona se vale a pena viver uma vida como Sue, visto tudo que isso  custa a Elisabeth.

Assim como em Vingança, há muita polarização sobre A Substância, e muito a se pensar e discutir sobre ele. Sem dúvidas, os melhores filmes são aqueles que nos provocam, gerando sentimentos bons ou ruins. Honestamente, é sempre muito gratificante encontrar filmes assim, e A Substância é claramente um deles. As protagonistas são detestáveis, mas os motivos que as levam a agir também são. Elas se tornam vítimas, mas, ainda assim, estão conscientes de seus próprios atos. Em um gênero onde normalmente há vilões e mocinhos bem definidos, A Substância eleva essas questões, como Julia Ducournau fez em Titane. Assim como Ducournau, é gratificante ver Coralie Fargeat em plena atividade.

Quer receber conteúdo do TemQueVer no Whatsapp? (Clique aqui)

Quer escrever para o TemQueVer? Entre em contato conosco através do chat de nossas redes sociais (Instagram e Facebook) ou pelo email temquevercinema@gmail.com

*Formada em História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

Comente