SOL DE INVERNO

Pequena joia sobre as profundezas sombrias da alma

Por Leonardo Lima*

NOTA: 7,0

Todo filme tem uma história. Poucos, no entanto, possuem uma boa história a ser contada acerca de sua distribuição, etapa importante no processo consagratório de uma obra cinematográfica. Sol de Inverno, dirigido pelo japonês Kiyoshi Okuyama, se constitui num exemplo pertinente de trajetória cuja peculiaridade acrescenta camadas à análise do fenômeno fílmico, desde a fase de pré-produção até a chegada ao público nas salas de cinema, nas plataformas digitais e nos streamings.

Exibido em Cannes, na mostra Un Certain Regard, Sol de Inverno chamou a atenção dos amigos Chico Fireman e Michel Simões, cinéfilos e críticos de cinema. Empolgados com o longa, que, para eles, tratava-se de uma joia escondida na programação do festival francês, avaliaram como oportuna a ideia de fundar uma distribuidora, a Michiko Filmes, com o intuito de adquirir os direitos de exibição da obra no Brasil. Ao fazer isso, ambos buscavam superar um dos obstáculos que se impõem na hora de trazer ao país filmes “menores” e independentes, que, a despeito de sua manifesta qualidade, costumam não ter uma janela exibidora por falta de interesse comercial das grandes distribuidoras cinematográficas.

Garoto introspectivo em uma pacata cidade ao norte do Japão, Takuya (Keitatsu Koshiyama) não é hábil em se comunicar e estabelecer laços de sociabilidade; além disso, demonstra pouca desenvoltura física, como fica evidente ao vê-lo praticar beisebol e hóquei no gelo com outros meninos da mesma idade. Essa realidade muda quando Takuya conhece Sakura (Kiara Nakanishi), adolescente por quem se apaixona e desperta nele a vontade de aprender patinação no gelo, tendo como instrutor Arakawa (Sosuke Ikematsu), um ex-patinador profissional de sucesso.

Não assista a Sol de Inverno com expectativas nas alturas. Contido e intimista, o filme guarda sua força e capacidade de surpreender em momentos de sutileza narrativa, expressa através de um roteiro que ressarça a exposição incauta movida pela subestimação da inteligência do espectador, e de uma direção que sabe dar forma e densidade visual aos sentimentos e emoções de seus personagens, rejeitando, assim, a esterilidade de imagens bonitas desprovidas de propósito.

Por falar nas imagens, ressalte-se a maneira como Okuyama transforma a pista de patinação numa espécie de palco onírico onde Takuya e Sakura se realizam enquanto estão a deslizar nela, efeito esse conseguido graças à captura dos feixes de luz que adentram o espaço e acendem nos corações as chamas de ser livre para voar sem sair do chão. O tom clássico da trilha sonora complementa a composição desse ambiente de atmosfera particularmente mágica.

Porém, os sonhos não são imunes ao peso da realidade. A felicidade que, até então, alimentava a existência de suas personagens em meio à desolação de mais um inverno não se mostra suficiente para impedir as sombras projetadas pelo preconceito irracional e estúpido. Ainda que o final da história talvez não seja o que certamente gostaríamos de ver, acaba sendo importante que o desenrolar dramático de Sol de Inverno – desenvolvido de modo lacunar e apressadamente, diga-se de passagem – termine por evidenciar o quão destrutivo pode ser a não aceitação do outro tal como ele é e se reconhece. É triste, melancólico, mas é a vida tal como ela se apresenta com força no cotidiano. Muitas vezes, o inverno mais tenebroso é aquele que trazemos conosco, dentro de nós, revelador das profundezas sombrias da alma.

Título original: Boku No Ohisama

Direção: Kiyoshi Okuyama

Ano de lançamento: 2024

País: Japão

Duração: 90 minutos

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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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