Canina (2024)

“As normas sociais, as expectativas de gênero e boa e velha biologia”

Por Ana Caroline Acosta*

Acompanhamos a rotina de uma mulher, artista, mãe de um filho de dois anos, que deu uma pausa na carreira para dedicação exclusiva da casa e da criação de seu filho. Paralelo a isso, o marido e pai continua sua rotina, se ausentando alguns dias de casa em função de seu trabalho. Neste filme de estética desconfortável, vemos uma mulher que, ao lidar com a maternidade, passa por uma transformação canina.

Na primeira cena, que se passa em um supermercado, observamos o diálogo da protagonista com seu filho que reencontra uma amiga e é questionada de como está sendo a maternidade. Ela responde:

-É uma boa pergunta, sabe?

 E a partir daí ela responde de duas formas, a ideal e a real, já demostrando sobre o que iremos nos deparar em relação aos seus pensamentos no decorrer do filme.

Em seguida, observamos a rotina de uma mãe casada, mas que a maior parte do tempo é uma mãe solo. Todos os aspectos e sentimentos de desconforto e cansaço que envolvem a criação de uma criança estão presentes nela: na privação de sono, num banho sozinha, em não conseguir engatar numa leitura, correr, pintar.

A perda da identidade da personagem é um ponto de convergência ao qual eu, como mãe, me identifiquei. Enquanto a rotina acontece é impossível não trocar de lugar facilmente com a protagonista. As cenas repetitivas da rotina reforçam o sentimento de que podemos ser engolidas por ela e com a cumplicidade da sociedade, principalmente dos parceiros, pais dos nossos filhos.

Enquanto ela vai se distanciando da vida antes do parto, ela traz reflexões primorosas, profundas e necessárias em que facilmente nos identificamos. As mudanças, não só físicas e emocionais, mas para muito além, provocando um debate de como aceitamos e idealizamos entrar nessa viagem e como ela pode ser desafiadora e solitária. E não somente a maternidade, mas também o casamento.

O marido e pai (não sei se ele consegue ser/exercer essas duas funções) é o que mais me trouxe desconforto e indignação.  Se por um lado a mãe cria uma persona animalesca canina, esse pai beira a brutalidade, incompreensão e insensibilidade de seu papel diante de sua família.

Existem tantas lacunas sobre responsabilidade afetiva nessa personagem que deixam evidente seu comportamento. O julgamento que faz constantemente a companheira sobre seus sonhos e profissão, a falta de companheirismo diante de uma mulher que está sobrecarregada na complexidade de existir para além da maternidade e ausência de conexão com seu filho, o transformam em sujeito alheio e egoísta.  Em um determinado momento que precisou ficar em tempo integral sozinho com seu filho, o mesmo relatou que pareceu que estava sequestrando a criança. Deixando evidente seu distanciamento.

A seguir, atenção para spoiler:

Em determinado momento do filme, o pai se prontifica a dar banho no filho, a mãe relaxa e se atira no sofá. A cena fica repetindo, pois cada vez que ela tenta se jogar no sofá ele solicita muitas coisas: a tolha, a mamadeira… e quando ela chega no banheiro, o marido está no vaso com celular na mão. Alguém se identificou por aí?

A fábula canina:

A partir do encontro com uma obra de etnografia mítica: um guia para mulheres mágicas, a mãe se deparou com algumas experiências. As mulheres pássaros do Peru, moravam em galhos altos da floresta tropical, onde construíam seus ninhos delicados com gravetos e juncos. As mulheres pássaros ganhavam penas e bicos aos 60 anos, apenas depois dos filhos crescerem. E lá passavam suas vidas pulando de árvore em árvore produzindo os cantos mais lindos e aprendendo a voar.

Na mitologia Hindu, Sarama é uma cachorra que serve ao deus guerreiro Indra. Ela é mãe de todas as criaturas com garras.

Na mitologia Grega, Quimera representava todas as coisas domesticas e maternais. Uma cabra que cuidava dos jovens e da casa, simultaneamente, e que possuía as qualidades de uma fera.

Assim a mãe, diante de sua realidade, encontrou um meio original e peculiar de enfrentar seus problemas, se tornando um cão.

Ao ser tornar um cão, ela pode ser livre sem julgamentos, até dela própria, pois a noite, quem assume o controle é o cão. Ela pode andar em bando, com os seus iguais. Pode correr, caçar, explorar e se sujar todas as noites, quando a casa e o filho estão limpos.

Como cão, ela lembra da mãe, das suas origens, da sua infância. O quanto faz falta ter a mãe por perto nesse momento.  E nessa transformação animal- humano, meio gente meio bicho que ela se reencontra com sua essência. Neste ajuste emocional-físico-psíquico, compreende sua nova jornada.

Tem que ver! Não só pela ótima performance da Amy Adams, mas pela reflexão e debate sobre a vida profissional, desejos, maternidade e tantos estereótipos impostos para nós mulheres.

Escrito e dirigido por Marielle Heller e baseado em um romance de Rachel Yoder.

*Historiadora, educadora ambientalista e mãe do Francisco.

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