A FILHA DO PALHAÇO E AS SEQUELAS DA FALTA (Crítica)

“Você pode ter um tempo pra pensar
E uma eternidade pra se arrepender
Tá na cara, dá pra ver no seu olhar
Tô fazendo muita falta pra você”.

(Trecho da música Tô Fazendo Falta, de Joanna)

Por Pablo Rodrigues*

A vida é como uma peça teatral, um palco onde muitas vezes precisamos atuar, fazendo uso de máscaras, de personas, para reprimir ou expressar sentimentos e comportamentos que geralmente não são aceitos pela sociedade ou que não conseguimos colocar pra fora de outro modo. E durante o espetáculo, se cometemos alguma falha, não há como voltar atrás. A única coisa a fazer é seguir em frente, pois “o show tem que continuar”. Esta alegoria ilustra bem a dinâmica da trama de A FILHA DO PALHAÇO (2022), novo longa-metragem do diretor cearense Pedro Diógenes (INFERNINHO, PAJEÚ), que acaba de chegar aos cinemas.

Vencedor do prêmio principal da Mostra de Cinema de Gostoso e do prêmio do público na Mostra de Tiradentes, o filme é livremente inspirado na história real do primo do diretor, o comediante cearense Paulo Diógenes, o qual ficou famoso nacionalmente ao interpretar durante anos a famosa personagem Raimundinha, inspiração para a Silvanelly, personagem interpretada pelo protagonista do filme. Paulo Diógenes faleceu em fevereiro deste ano.

Na trama, acompanhamos a história de Renato, um humorista que se apresenta como drag queen em bares , churrascarias e casas noturnas de Fortaleza, interpretando a personagem Silvanelly. Certo dia, ele recebe a visita de sua filha Joana, uma adolescente de 14 anos que veio para passar uma semana com o pai que não a criou. Embora mal se conheçam, nos dias em que estarão juntos, os dois irão viver novas experiências e sentimentos que irão expor suas mágoas, carências, arrependimentos, transformando-os profundamente.

Em A FILHA DO PALHAÇO, Pedro Diógenes usa de uma direção sensível e delicada para criar uma obra chapliniana que, ao mesmo tempo, consegue trazer beleza e melancolia. O roteiro, também escrito pelo diretor em parceria com Amanda Pontes e Michelline Helena, discute temas como abandono paterno, sexualidade, diferenças geracionais, culpa, bem como os impactos da ausência e as carências e traumas que ela pode trazer. Além disso, desenvolve muito bem suas personagens, nos permitindo conhecer suas angústias, anseios, medos, sem apelar para exposições fáceis e previsíveis. Tudo é transmitido ao expectador de modo sutil e delicado. Isso se estende também para a dinâmica entre a dupla de protagonistas, que vai se desenvolvendo de modo gradativo em diálogos, comportamentos, ações.

A fotografia de Victor de Melo faz um ótimo trabalho ao priorizar planos longos, evitando ao máximo os cortes dentro de uma mesma cena. Esta escolha estilística entra em sintonia com a lógica do teatro citada no início do texto. É como se a fotografia transformasse as cenas em uma peça teatral (e o protagonista Renato é um ator de teatro), onde as personagens passam boa parte do tempo atuando uma para o outra. Ao mesmo tempo, a ausência dos cortes e a movimentação da câmera a transformam em uma espécie de força externa que não deixa escapatória para as personagens a não ser se aproximarem cada vez mais na imagem e, consequentemente, em suas vidas.

Da mesma forma, é interessante como esta aproximação é feita. Pai e filha não conseguem expressar seus sentimentos um para o outro. Quando o fazem, é através da arte. Seja na origem da criação da personagem Silvanelly, interpretada por Renato, ou na peça de teatro que assistem juntos ou nas músicas que embalam o filme e refletem muito bem os sentimentos das personagens. Inclusive, o clímax da trama se dá justamente através da música, com pai e filha dançando juntos, numa das cenas mais lindas do cinema brasileiro recente.

O elenco, por sua vez, está ótimo. Demick Lopes faz um belíssimo trabalho como Renato, com uma atuação minimalista que consegue expressar muito bem a melancolia por trás de sua “alegria”. Sua personagem é praticamente um Pagliacci, um pierrot, um palhaço triste. Já a estreante Lis Sutter demonstra talento, conseguindo transmitir bem a carência, os anseios e o desejo em se descobrir de Joana. O filme também conta com a participação de Jesuíta Barbosa e Ana Luiza Rios e Jupyra Carvalho, ambos ótimos, mesmo com pouco tempo de tela.

A FILHA DO PALHAÇO é uma obra sensível e profundamente emotiva, que nos encanta ao mesmo tempo que nos faz refletir sobre nossos erros, nossos desejos, mas principalmente, no mostra que nunca é tarde para recomeços, pois o amor está sempre à espera de abrirmos as portas de nossos corações. Para isso, é preciso estar presente, ainda que isto signifique enfrentar as dores da vida. Um filme lindo, que demonstra mais uma vez a força e a qualidade do nosso cinema.

Em exibição nos cinemas

Distribuição: Embaúba Filmes

Quer receber conteúdo do TemQueVer no Whatsapp? (Clique aqui)

Quer escrever para o TemQueVer? Entre em contato conosco através do chat de nossas redes sociais (Instagram e Facebook) ou pelo email temquevercinema@gmail.com

*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.

Comente