A Incrível História de Henry Sugar

Por Leonardo Lima*

Não é novidade alguma para qualquer cinéfilo que, nos últimos tempos, os filmes do norte-americano Wes Anderson haviam se transformado em representantes emblemáticos do chamado punhetic cinema – ou cinema de masturbação imagética, no qual os aspectos visuais se esforçam sobremaneira em funcionar em si e por si próprios, deixando, em contrapartida, um grande vazio de significados, em que os acontecimentos de ordem narrativa mais pareciam não ter qualquer relevância, de fato, quanto ao que se pretendia apresentar ao público.

Em outras palavras, o cinema andersoniano havia se encapsulado num gigantesco e lindo aparato de formas coloridas simetricamente dispostas em cada plano, ao mesmo tempo em que essa engenhosa catedral de imagens em movimento mostrava-se dissociada dos aspectos concernentes àquilo que constitui, em última instância, um dos objetivos por excelência da arte cinematográfica – não tão evidente no caso de obras mais abstratas e experimentais, mas ainda, assim, subjacente à sua lógica – a saber: gratificar a consciência do espectador proporcionando-lhe uma experiência narrativa fluida e memorável.

A convite da Netflix, Wes Anderson roteirizou e dirigiu quatro curtas-metragens inspirados na obra literária do (controverso) escritor galês Roald Dahl, autor de livros como A Fantástica Fábrica de Chocolate, James e o Pêssego Gigante, Matilda e O Fantástico Sr. Raposo (já adaptado para o cinema pelo próprio Anderson), dentre tantos outros. Nessa coletânea de curtas recém-lançados, o cineasta parece ter caído em si e reconhecido a necessidade de a beleza ímpar do design de produção de suas composições fílmicas estar a serviço da arte de contar boas histórias.

A Incrível História de Henry Sugar desponta como o principal e mais exitoso dessa leva de curtas – coincidentemente, trata-se do mais longo deles, algo que talvez explique a sua qualidade destacadamente superior a dos demais. Não que os outros três (O Cisne, Veneno e O Caçador de Ratos) sejam propriamente ruins, mas o inventivo processo de desconstrução e reconstrução da linguagem cinematográfica aqui levado a efeito por Wes Anderson, crivado de nuances particulares resultantes do amálgama entre cinema, literatura e teatro, parece funcionar melhor quando a narrativa possui tempo elástico o suficiente para espraiar raízes e dizer a que veio, sem necessitar correr na transição entre os atos.

Em A Incrível História de Henry Sugar vemos mais uma vez a tradicional reunião de uma constelação de atores – com destaque para Benedict Cumberbatch, Dev Patel e Ben Kingsley – que marca os projetos de Anderson; porém, desta vez, todos estão postos de maneira orgânica dentro da encenação, contribuindo efetivamente para o desenrolar da trama em camadas. A complexa mise-en-scène estabelecida, envolvendo narradores em uma triangulação reversa (em formato 1-2-3-4-3-2-1 de aparição), causa estranheza à primeira vista, mas tão logo o espectador se acostuma à peculiar sintaxe narrativa proposta pelo diretor, com o intuito de mesclar o seu estilo cinematográfico com o estilo literário de Dahl, o deslumbramento emerge com força.

Todavia, diga-se de passagem que a artificialidade imagética em alguns momentos do filme por vezes incomoda, desafiando qualquer suspensão da crença. Soma-se a isso as intervenções diretas feitas por uma espécie de contrarregra anônimo em diversas ocasiões, algo que até dá pra entender do ponto de vista teórico imaginado por Wes Anderson, mas, na prática, serve tão somente para tirar o público por breves instantes da narrativa em curso.

De todo modo, é impossível não reconhecer que temos aqui um Wes Anderson aparentemente mais propenso ao amadurecimento de seus propósitos como cineasta, em busca de projetos que não apenas fascine o público com sua cenografia milimetricamente organizada, mas também o aproxime daquilo que está sendo projetado na tela, fazendo com amemos e/ou odiemos personagens e seus (in)fortúnios, vibremos com as reviravoltas da história, nos frustremos com finais meias-bocas, entre outras reações diante de filmes que tenham alma e pulsem vida.

*Recifense, 38 anos, sociólogo, aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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