A moralidade punitiva em A Hora do Pesadelo

Se a juventude não acordar gritando, não acordará de forma alguma.

Por Sthefaniy Henriques*

O eterno Wes Craven (1939-2015) entrou para a história como um dos maiores cineastas do cinema de horror, deixando para sua memória e legado grandes contribuições para o gênero no qual suas principais obras se encaixam. Além do cinema de horror, a sétima arte como um todo também se beneficiou das contribuições de Craven devido às suas histórias com construções instigantes e inteligentes. Dois grandes exemplos que demonstram a genialidade do diretor que, inclusive, induziram  um novo refresco ou  a própria reinvenção de um  sub-gênero são também suas obras mais notórias: A Hora do Pesadelo (1984) e a franquia Pânico.

Craven foi responsável por emplacar dois assassinos sanguinários que até hoje são referência para a cultura do terror e de extrema popularidade: Ghostface e Freddy Krueger. No entanto, ambos vilões icônicos não definem o cinema de Craven, assim como a metalinguagem não é o único fator que determina Pânico como obra prima e Pânico, porventura, não é a única referência do cinema de Craven. Desta forma, é necessário olhar para o ótimo e menos ‘’refinado’’ A Hora do Pesadelo, filme que deixa nítido o apreço que Wes Craven tinha por temáticas como gentrificação e valores familiares dentro de um período onde o neoconservadorismo estava em voga.

O contexto político-social estadunidense no momento de produção de A Hora do Pesadelo. 

Lançado em 1984, A Hora Pesadelo coincide com o mandato do republicano Ronald Reagan como presidente dos Estados Unidos. O governo de Reagan foi um solo fértil para o avanço de políticas neoconservadoras visto que o próprio Reagan, com o objetivo de expandir a hegemonia estadunidense, conter a União Soviética, resolver a crise econômica e reduzir os gastos do governo federal criou o projeto chamado de Reagonomics, que era banhado em ideias liberais e neoconservadoras.

Com o estabelecimento das políticas de Reagan, é necessário pontuar que o neoconservadorismo surge nos anos 60 com a ideia que mesclava o liberalismo clássico com a moral da sociedade vigente. Segundo o historiador Roberto Moll Neto, os neoconservadores   formularam que o Estado, ao tentar conquistar o igualitarismo, tomou o lugar da família, da igreja e da comunidade. Com isso, desestabilizando esses valores tradicionais, os jovens estavam mais volúveis a seguirem caminhos tortos, como a entrega ao uso de entorpecentes, prostituição, libertinagem e homossexualidade.

Freddy Krueger como uma falha do Estado

 Aos caros leitores, cuidado. A partir daqui o texto conterá muitos spoilers.

Quando Nancy (Heather Langenkamp) é levada para o porão por sua mãe após a mesma prometer que lhe contaria um grande segredo, é revelado que Krueger era um morador de Elm Street, responsável por diversos assassinatos de crianças do bairro e que fora preso em seguida. Esse momento é bastante importante, afinal, nos cede o primeiro e considerável fragmento da história de origem de Freddy.

Ao ouvirmos atentamente o relato de Maggie (Ronee Blakley), não estamos apenas expostos a sua grande revelação que é a culpa pelo assassinato Freddy em conjunto com o pai de Nancy e a vizinhança. Maggie, enquanto contava sua vingança, afirma que o motivo pelo qual Freddy voltou às ruas logo após a prisão foi uma falha Federal, não houve concretização de um mandado de busca, portanto, Krueger não poderia ser considerado culpado. Essa informação adicional de Maggie e sua justificável repudia aos juízes representa uma imagem que tanto o liberalismo como o neoconservadorismo buscaram estimular que é a ineficiência do Estado a partir de seu grande acúmulo estatal, presente na década de 50/60.

Considerando que Nancy tinha poucos meses quando Freddy é assassinado, o período de atuação do mesmo ocorre entre os finais dos anos 1960 e início da década de 1970, intervalo que Moll Neto pontua como de desilusão da população estadunidense com o liberalismo. Época que, também, está associada ao momento da luta pelos direitos civis, ações sociais do governo de Lyndon B. Johnson e sua guerra contra a pobreza, além de todos os movimentos culturais como, por exemplo, a contracultura. Para os neoconservadores, esse momento estadunidense foi um período de degradação tanto da cultura como do espírito e, portanto, não pode ser surpresa que os ataques de Krueger contra crianças se manifestem justamente no decorrer desses anos. Krueger remete aos anos ‘‘terríveis’’ dos Estados Unidos.

Krueger é uma falha da ineficiência do Estado e, em minha opinião, surge como um aviso do subconsciente apresentando que outrora os hábitos tão normalizados nos anos 80 continuam a apresentar uma espécie de perigo moral que logo poderia se tornar um problema da nação. E se Freddy buscasse levar toda a juventude? e se surgisse uma histeria nacional? O mesmo retorna em sonhos alheios para promover uma carnificina que se destina a nova juventude, nascida ou exposta às influências e transformações deixadas pelos anos 60 e 70.  Mais que isso, Krueger volta durante o período Reagan, onde o presidente tem um amplo discurso de que seria necessário resgatar a fé que, segundo Moll Neto, seria vital para a reconquista dos valores e virtudes morais que foram perdidas durante os anos ‘‘terríveis’’.

Nancy Thompson, a Final Girl resgatada pela fé.

Se Krueger retorna para atacar aqueles de pensamento ou ações imorais, eis a questão: Por que persegue a inocente Nancy Thompson?

Nancy é o ponto central da narrativa de A Hora do Pesadelo, responsável por unir duas vertentes de suma importância, primeiro para o cinema de Wes Craven e, segundo, para a sua época (que reflete no subgênero slasher). Nancy, com roupas comportadas e conduta considerada boa para os padrões morais em vigência, está entre uma família disfuncional e amizades perigosas. O famoso ditado popular ‘‘Quem se mistura com porco, farelo come’’ traduz a perfeita situação em que Nancy será inserida com a grande exceção de não haver um pai ou uma mãe que a alerte sobre isso.

Seguindo a ordem sociologicamente correta, a família é o primeiro núcleo de convivência de um indivíduo, logo a manifestação desse primeiro núcleo durante os anos de neoconservadorismo se faz com a famosa imagem da família de comercial de margarina, cujo cada membro cumpre um papel social e segue o comportamento e dinâmica pregada pela religião. Aqui temos o primeiro ponto que justifica a perseguição de Freddy: a família de Nancy não é assim. A mãe de Nancy é alcoólatra e não segura as rédeas da filha, ou seja, não totaliza a sucessividade em seu papel de mãe, enquanto a figura paterna de Nancy nunca está presente em casa.

Por Nancy ter pais que não cumprem seu papel, ela tem como amizade Tina Gray (Amanda Wyss), Rod Lane (Jsu Garcia) e como namorado Glen Lantz (Johnny Depp), todos eles que representam uma juventude libertária, símbolo da contracultura e das consequências dos direitos civis, da intromissão do Estado na família.

Tina, melhor amiga de Nancy, tem um núcleo familiar desestruturado. Seu pai abandonou a família quando a mesma tinha 10 anos e sua mãe nunca se casou novamente, sendo representada por Craven como uma devassa que, inclusive, no dia da morte de Tina, estava em Las Vegas com o novo namorado. A falta de uma figura paterna e a ausência frequente da mãe conduz Tina a ser sexualmente ativa ainda na juventude, algo considerado censurável para os conservadores.

Já Rod, namorado de Tina, representa toda a contracultura. Seu vestuário é composto pela ausência de uma camisa, presença de uma jaqueta e, em alguns momentos, os pés descalços como hippie. Com a prisão de Rod, mais informações sobre ele são reveladas, Rod é músico (o que, na época, não significa algo bom) e possui antecedentes por drogas e violência.

Por último, Glen é a própria ameaça a dignidade de Nancy, afinal, em várias tomadas Glen se demonstra disposto a avançar em seu relacionamento com Nancy e isso, obviamente, signifca sexo.

Krueger consegue arrastar para a morte todos os adolescentes secundários que supostamente mereciam ser punidos pelos seus hábitos ‘‘ruins’’, entretanto, isso não significa que Nancy estava constantemente correndo riscos ao dormir. A primeira ameaça mais próxima de concretização ocorre minutos antes de Tina morrer, mas Nancy acaba sendo salva por um crucificado que cai sobre ela. O simbolismo do crucifixo indica o caminho que Nancy tem que trilhar para se salvar de Krueger, o caminho da fé esta que levará moral e bons costumes e é exatamente isso que ela faz.

A cada ataque de Freddy nos sonhos de Nancy, mais a personagem se alinha ao conservadorismo que também significará o amadurecimento e a racionalidade. As mortes de seus amigos – que demonstra o afastamento de pessoas de índole duvidosa – facilitam o processo da final girl que se completa quando Nancy, no último combate com Krueger, faz uma oração antes de dormir, pedindo à Deus que leve sua alma caso não saia viva de seu sonho.

O final de Wes Craven e a luta vitalícia pela moralidade.

Com Nancy vencendo Krueger, os breves minutos de felicidade, paz e sensação de plena resolução que acontecem no final do filme – como a mãe de Nancy falando que deixaria de beber – se perdem quando Nancy entra no carro de Glen com Tina e Rod no traseiro.

Krueger retorna para atacar novamente o grupo de adolescentes, mas como poderia? Nancy já havia se ‘‘convertido’’, o mal já fora destruído e, a punição, de certa forma, já aconteceu para todos. O final surrealista de Wes Craven nos relembra de um fundamento da teologia cristã que é a guerra contra os pecados mundanos e que ela dura até a última batida do coração. Nancy passou por uma desintoxicação do mal de espírito ao ficar acordada por 8 dias lutando contra a punição que deveria sofrer e, com isso, iniciando um afastamento do imoral, se tornando madura e ganhando condutas religiosas, entretanto, seu final continua o mesmo, afinal ela cedeu a perdição novamente.

O final de Wes Craven representa que o mal, para os conservadores, sempre pode voltar à tona caso o indivíduo deixe os trilhos da moralidade. A punição pela degradação do espírito nunca deixará de existir e será cobrada através de Krueger.

Disponível HboMax

*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e aspirante a crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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