A negação do imperialismo em Indiana Jones e a Relíquia do Destino

Por Pablo Rodrigues*

Obs: contem spoiler

A franquia Indiana Jones é uma das mais bem-sucedidas da história do cinema. As aventuras do arqueólogo americano caçador de relíquias antigas, interpretado por Harrisson Ford, fizeram um grande sucesso na década de 1980, com filmes aclamados tanto pela crítica quanto pelo público, revolucionando o cinema de aventura e consolidando de vez o seu diretor, Steven Spielberg, como um dos principais cineastas de sua geração. Iniciada em 1981 com Os Caçadores da Arca Perdida, a franquia teve ainda três sequências, Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984), Indiana Jones e a Última Cruzada (1989) e Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (2008).

Do ponto de vista de linguagem cinematográfica, quase toda a franquia é formada por ótimas obras, dirigidas com maestria por Steven Spielberg, a partir do personagem criado por George Lucas. No entanto, com relação ao seu conteúdo temático, vistas hoje, tais obras mostram-se bem problemáticas no seu discurso político ideológico, bem como em suas representações sociais. Contudo, neste ano de 2023 chegou aos cinemas Indiana Jones e a Relíquia do Destino, o quinto capítulo da franquia que, diferente de seus antecessores, busca atualizar o personagem aos novos tempos e tornar suas aventuras ainda cinematograficamente relevantes.

Assim, o presente texto busca refletir sobre os aspectos problemáticos presentes no conteúdo temático da franquia Indiana Jones, além de demonstrar, a partir de uma análise crítica de seu novo filme, como este representa um amadurecimento não apenas do discurso político ideológico desse universo, como também de seu protagonista.

Um herói saqueador

Não é segredo que, ao longo da história, o cinema, assim como todas as demais artes, foi utilizado como um aparelho de hegemonia, ou seja, uma ferramenta de propagação e consolidação da ideologia da classe dominante. O cinema hollywoodiano é o maior exemplo disto. Este sempre foi um veículo de apologia dos valores e ideais do liberalismo capitalista americano para o mundo. Nesse sentido, o cinema blockbuster, do qual Steven Spielberg e sua franquia Indiana Jones são alguns dos principais representantes, pode ser considerado um exemplar típico desse processo.

Podemos perceber isso ao analisar o universo da franquia. O personagem Indiana Jones, por exemplo é, na verdade, um herói saqueador, um arqueólogo ladrão que rouba relíquias sagradas de outras culturas para levar ao seu país, os Estados Unidos. Um outro aspecto problemático é a forma como estas culturas são representadas nos filmes. Árabes, indianos, chineses, russos, todos esses povos são retratados a partir de uma visão estereotipada e até mesmo xenófoba. Além de uma defesa explícita do colonialismo imperialista. Em Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984) por exemplo, os heróis são salvos pelo exército britânico, que mata os membros de uma antiga seita religiosa indiana. Lembrando que, no período histórico retratado no filme, a década de 1930, a Índia estava sendo colonizada pelo governo britânico, o qual invadiu o país e o dominou por anos. Da mesma forma que em Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (2008) onde, em pleno século XXI, a franquia insistiu em retomar o conflito da Guerra Fria, trazendo de volta o velho e datado discurso anti-Rússia e anti-comunismo.

Ao mesmo tempo, é interessante perceber como tais características do personagem e da franquia refletem as características da própria nação americana, bem como seus ideais. Assim como o Indy, historicamente, os EUA invadiram e saquearam diversas nações, roubando suas riquezas. Foi assim que esse país se tornou a potência mundial que é, além dos genocídios que promoveu e promove ao redor do mundo. Atualmente este modus operandi ainda permanece ativo, basta lembrarmos da longa e infame guerra pelo petróleo no Iraque, ou a tentativa recente de financiar a guerra da Ucrânia para obter o monopólio do gás na região.

Assim, ao analisar a franquia por uma perspectiva sócio política, a mesma mostra-se problemática, principalmente diante das pautas sociais contemporâneas. Suas representações acabam sendo o reflexo de uma visão de mundo pautada pelos valores liberais do capitalismo americano, pois este se sustenta numa lógica imperialista que, consequentemente, desrespeita as diferentes culturas mundo à fora. Não é à toa que esses filmes surgiram em um período de consolidação do neoliberalismo nos EUA, a saber, a década de 1980, sob o governo de extrema direita de Ronald Reagan. Desta forma, trazer esta visão de mundo e estes ideais a partir de uma série de filmes blockbusters, divertidos de se ver, com qualidade cinematográfica, acabou se mostrando uma estratégia extremamente eficiente para disseminar tais ideias.

A Relíquia do Destino

Em um determinado momento do terceiro ato de Indiana Jones e a Relíquia do Destino (2023), os personagens do filme vão parar no passado, mais especificamente durante a invasão romana à comuna de Siracusa, na Itália, que ocorreu cerca de 200 anos antes de Cristo. Quando vão retornar ao presente, Indy recusa-se. Ao ser questionado sobre as razões de não querer retornar ao seu tempo, o personagem diz, em tom melancólico, numa atuação emocionante de Harrisson Ford: “voltar para quem?”. Esta frase acaba adquirindo uma carga dramática muito simbólica dentro do contexto da trama desta nova aventura, na qual o protagonista enfrenta seu maior adversário: o tempo.

A trama se passa no final da década de 1960 e acompanha nosso famoso arqueólogo Indiana Jones prestes a se aposentar, enquanto ainda dá aulas em uma universidade. É quando uma antiga ameaça de seu passado ressurge e ele, desta vez junto com sua afilhada Helena Shaw (Phoebe Walter-Bridge), precisa embarcar em uma nova aventura pelo mundo a fim de impedir que um artefato com a capacidade de permitir viagens no tempo caia nas mãos dos inimigos nazistas.

A Relíquia do Destino é uma obra que, a princípio, não tinha razão de existir, a não ser para dar um encerramento digno ao personagem na franquia após a experiência problemática de O Reino da Caveira de Cristal (2008). No entanto, o longa consegue se fazer relevante, principalmente com relação ao seu conteúdo temático. Enquanto nos filmes anteriores tínhamos um universo que refletia o caráter imperialista e liberal americano, este novo capítulo compreende o quão problemático é esse caráter e se propõe a desconstruir e ressignificar o personagem, bem como o seu universo. Nesse sentido, o fato da direção ter mudado das mãos de Steven Spielberg e ido para o comando de James Mangold (Johnny e June; Logan) fez toda a diferença, visto que o cinema do primeiro há anos vem se mostrando cada vez mais conservador.

Embora não tenhamos aqui a fluidez e o brilhantismo da câmera de Spielberg, a direção de Mangold não decepciona, conseguindo conduzir a trama com eficiência, dando um ritmo dinâmico ao filme através da boa montagem, que fazem suas quase duas horas e meia passarem tranquilamente. O longa também se escora bastante na nostalgia, inclusive fazendo uso da clássica estrutura narrativa dos filmes anteriores, referenciando-os direta e indiretamente, além de trazer outras referências que sempre foram marcantes para a série, como os filmes da franquia 007. Já as sequências de ação, mesmo não sendo memoráveis, são bem construídas e empolgantes.

No entanto, o que chama mais atenção no longa é mesmo o seu conteúdo temático. Dos filmes da franquia, talvez este seja o que possui maior carga dramática. Nele, Indy se tornou um homem melancólico e amargurado, que perdeu o filho para a guerra no Vietnã e a companheira Marion para o divórcio. O personagem sente-se deslocado de seu tempo e, ao ver as mudanças da sociedade ao seu redor, não consegue se enxergar nelas. Desta forma, neste filme, vemos o famoso arqueólogo Indiana Jones, o qual viveu sua vida em busca de artefatos e relíquias antigas, se tornar ele mesmo uma peça de museu.

Nesse sentido, o roteiro é inteligente em situar a trama no final da década de 1960, período de efervescência dos movimentos sociais e das lutas pelos direitos civis nos EUA, bem como de desconfiança por parte da população para com o país. Um exemplo destas mudanças sociais é representada pela inserção da afilhada do protagonista, Helena Shaw, a qual é a personagem feminina mais bem construída da franquia. Uma mulher que teve Indiana como grande referência na infância, se tornando também uma aventureira e caçadora de relíquias, além de ser forte e independente. A atuação carismática de Phoebe Walter-Bridge expressa isso muito bem. A dinâmica entre sua personagem e Indy gera diálogos e momentos muito divertidos, além de expor e problematizar o machismo do protagonista.

Outro ponto de destaque é que, na trama, assim como em Os Caçadores da Arca Perdida e A Última Cruzada, os nazistas voltam a ser os vilões, com um plano para mudar a História e instaurar uma ditadura nazista global. Contudo, trazer novamente o nazismo não é apenas uma forma de referenciar os filmes anteriores, mas também de dialogar com nossa realidade política atual. Em tempos de retorno e crescimento das ideias fascistas pelo mundo com a ascensão da extrema direita, a exemplo do governo Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, colocar o herói tentando impedir a volta do nazifascismo acaba sendo muito significativo e entra em total sintonia com nossos tempos.

Obviamente que não podemos ser ingênuos quanto às intenções de Hollywood com este tipo de proposta. É fato que a indústria hollywoodiana vem se apropriando das pautas progressistas em suas obras para conseguir lucrar mais, já que existe uma grande demanda atualmente pela presença de tais questões na arte. No entanto, para além das intenções da indústria e mesmo não sendo uma proposta de ruptura com esta, é sempre bom ver quando cineastas conseguem trazer um olhar mais crítico sobre a realidade social em obras tão comerciais como a franquia Indiana Jones e o cinema blockbuster, até por que é importante salientar que este é o cinema que mais chega à grande massa.

Diante do exposto, é perceptível como Indiana Jones e a Relíquia do Destino, politicamente falando, caminha no sentido oposto aos filmes que o antecederam, mostrando-se ciente das problemáticas destes e, ao mesmo tempo, da necessidade da mudança. Assim, é muito significativo e até poético ver o filme deixar seu protagonista totalmente vulnerável e confrontado pelo tempo e as mudanças que este traz, expondo assim as contradições de tudo o que ele representava. E ver este icônico personagem do cinema hollywoodiano, representante do imperialismo americano, sendo desconstruído para se adaptar às mudanças sociais de nossa época, é muito gratificante. Um encerramento digno, sensível e honroso para um personagem tão rico e memorável.

*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.

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