A primeira arte – ressonância, consonância e dissonância

Por João Izé*

O documentário apresenta uma ideia geral sobre a arte musical que é desenvolvida em três vídeos de uma hora de duração- “ressonância, consonância e dissonância”. O título “A primeira arte” só poderia ser considerado autoexplicativo sem que houvesse a averiguação das contradições contidas no conteúdo apresentado.

A primeira seção se chama “ressonância” e trata de relacionar a música de modo amplo com a natureza humana apresentando estudos de neurociência e psicologia, além demonstrar que a música está na natureza física do universo através de sua sustentação matemática em relação à física dos instrumentos musicais. Destaca a música como elemento espiritual religioso, sendo nomeada a fé católica apostólica romana. Na segunda parte chamada “consonância”, temos uma longa construção que imbrica história da arte com explanação de músicos eruditos atuais sobre a gênese da teoria, leitura e escrita musical ocidental. Adiciona passagens pela história do folclore e da canção medieval européia, ópera, barroco, clássico e romântico, lançando imagens cinematográficas para ilustrar a proposta de seu programa. Na terceira e última parte a narração privilegia um recorte que se desprende diretamente do período clássico para a modernidade e busca colá-la à realidade múltipla pós-moderna que é vivida nas cidades de um Brasil periférico, opondo-se diretamente ao funk carioca como arte degenerada – por isso, chama-se “dissonância”. Nesta seção não faltam exemplos de expressões dualistas como “luz e escuridão”.             

   Em um primeiro momento podemos consentir em referenciarmo-nos nos grandes compositores do período clássico e sabermos de suas obras responsáveis por viradas estéticas, como é própria da renovação causada pelos movimentos artísticos. Certamente os limites se expandiram nesse período com o incremento da polifonia, porém devemos lembrar que a história da música apresentou vários outros rompimentos estéticos. Se o ponto de vista apresentado neste documentário considera a racionalidade como elemento de elevação erudita, podemos citar a música serial dodecafônica no séc. XX, que justamente por ser a mais racional e abstrata foi prescindida pelo mercado ou mesmo nas políticas de estado, sendo um conteúdo que segue sendo estudado centralmente nas academias. No Brasil, o nome mais relevante é o de  Hans-Joachim. Koellheuter e mesmo com seu referencial, a música atonal não teve estímulo por parte do estado nacional ao longo do séc XX. Seu método de composição é pouco inteligível para ser difundida em grande escala, o que inviabiliza a função geral da música nas nações modernas enquanto difusora simbólica da identidade nacional e, consequentemente, no acesso aos subsídios do estado.

Outro elemento que fica fora da abordagem apresentada no discurso dos referidos audiovisuais é o da polirritmia, subutilizada pela música clássica, mas que é artefato importante na formação do ritmo do funk carioca, cultura criticada no capítulo “dissonância”. Além das bases beat, o ritmo do funk carioca adiciona a clave rítmica afro-brasileira do tambor de congo, usada também na manifestação do maculelê e nos terreiros de matriz africana. A mesma clave rítmica é compartilhada por ritmos de outros países da diáspora como o candombe uruguayo, o son cubano e se perpetua no continente africano. Esses elementos devem ser apreciados como material vivo para apreender a realidade do país através de vivências proximais que representam a diversidade do povo brasileiro nas interrelações entre os ritmos que se reencontraram na diáspora do povo africano. 

Esses fios tecem uma rede complexa que deixou de ser contextualizada, deliberadamente, pela referida S/A que se situa nas áreas de entretenimento e educação. Tratando-se do campo da educação, vejo um produto essencialmente ideológico que se eximiu de demonstrar o estado geral da arte musical atual e que não apresenta meios práticos para superar a apontada degradação moral, pois difunde um projeto que busca recriar outro sentido para o passado na busca de justificar o etnocentrismo cultural ainda presente em setores da sociedade no Brasil atual. Por fim, dito documental claramente acaba por advogar pela visão conservatorial e encastelada da arte. Preocupa esse tipo de abordagem dualista buscar pautar os currículos escolares/acadêmicos ou mesmo chegar como conteúdo a ser incrementado pelos regentes de classe pelo Brasil afora, sendo ainda incerto, por exemplo, o projeto cívico-militar para a rede educacional do país. Em várias passagens do escrito até aqui, percebo constatar o óbvio: o espaço da educação reflete a média geral de cada sociedade e é, do mesmo modo, o espaço próprio que as mesmas têm para transformá-la.

Confira o fio no tweeter do prof. da UFBA @danieltperes acerca da controvérsia geradapelo Doc clicando AQUI

*Licenciado em geografia (UFRGS), técnico em instrumento musical (IFRS) e pós-graduando em Educação Musical (UERGS).

Comente