Por Pablo Rodrigues* – direto do Janela Internacional de Cinema de Recife
A partir da década de 1960, o Brasil, assim como outros países da América Latina, vivenciou durante vinte e um anos uma ditadura empresarial militar que se mostrou um dos momentos mais cruéis da história brasileira no século XX. Assim, é assustador ver, na atualidade, as mesmas ideias fascistas que fundamentaram a ditadura naquela época se consolidarem novamente no país, a ponto de termos pessoas pedindo por uma nova ditadura militar, outras até mesmo negando a existência desse período histórico nefasto. Em contextos como este, a arte pode exercer um papel social fundamental enquanto ferramenta de denúncia e também enquanto memória, a fim de não deixar que nosso passado seja apagado da história.
Nesse sentido, AINDA ESTOU AQUI (2024), novo longa-metragem do aclamado cineasta Walter Salles (Central do Brasil, Abril Despedaçado), cumpre estas funções com louvor ao retratar o período da ditadura empresarial militar brasileira, mostrando-se uma poderosa ferramenta de resgate de nossa memória histórica. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o filme narra a história real de Eunice Paiva (Fernanda Torres), viúva do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Melo), o qual foi preso e assassinado pela ditadura brasileira no início da década de 1970 e cujo corpo jamais foi encontrado.
Dirigido com a sensibilidade característica de seu diretor, AINDA ESTOU AQUI é mais um grande trabalho de Walter Salles. O cineasta traz uma abordagem intimista para sua obra que, diferente de outras que abordam o mesmo período histórico, o longa de Salles se diferencia por focar não nos aspectos macro do contexto retratado, mas nos impactos da ditadura numa realidade micro, neste caso, na família da protagonista e, principalmente, nela mesma.
O filme é um grande estudo de personagem, trazendo para sua narrativa uma perspectiva feminina acerca de sua história, já que acompanhamos toda a trama do ponto de vista de Eunice, ela é quem nos conduz. Nesse sentido, o ótimo roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega apresenta a protagonista como uma mulher que sofre em silêncio, contendo suas emoções o tempo inteiro, tanto por conta do medo da violência da ditadura, como também numa tentativa de não transparecer suas angústias diante de seus filhos, a fim de amenizar o sofrimento dos mesmos. Assistindo ao longa, ficamos sempre com a sensação de que a qualquer momento haverá uma explosão de emoções por parte da personagem, o que nunca acontece. O que temos são seus silêncios angustiantes, o que cria um incômodo proposital e constante que, somado ao ritmo mais lento da montagem e aos acontecimentos da história, acaba refletindo muito bem o contexto opressor vivenciado pela protagonista e sua família.
A direção também reflete esse contexto opressor em suas escolhas técnicas. A exemplo da fotografia, a qual inicialmente utiliza planos mais abertos e iluminados, com maior movimentação da câmera, para refletir o cotidiano feliz das personagens. Porém, quando o contexto da trama muda e a violência da ditadura se instaura na família protagonista, os planos passam a serem mais fechados, rígidos, a iluminação fica escura e com pouca movimentação de câmera.
Outro destaque é o ótimo trabalho de reconstituição de época, que atenta para todos os detalhes de modo cuidadoso, desde os objetos de cena aos figurinos precisos, bem como os elementos culturais daquele contexto, referenciados pelas personagens e pelo universo da trama, como artistas famosos da época, músicas que são utilizadas como trilha sonora, programas de rádio, jornais, tudo isso acaba contribuindo para compor o universo setentista do filme, bem como para nossa imersão no mesmo.
O elenco também está excelente, conseguindo transmitir de modo orgânico uma naturalidade que nos conecta ainda mais com as personagens, mesmo os papéis menores. Destaque para Selton Mello que, mesmo com pouco tempo de tela, consegue compor uma personagem marcante e, mesmo quando sai de cena, sua presença ainda é sentida.
No entanto, o impacto da obra não seria o mesmo sem a brilhante atuação de Fernanda Torres como Eunice. A veterana atriz, mais conhecida pelos seus papéis cômicos, surpreende com uma atuação minimalista e arrebatadora, que consegue transmitir muito com “pouco”. Sua Eunice é silenciosa e tenta nunca perder o controle emocional, mesmo diante da tragédia que se abate sobre sua família. E Fernanda transmite isso de forma impecável em gestos sutis, no olhar. Simplesmente uma das melhores atuações dos últimos anos no cinema brasileiro.
Mesmo se estendendo um pouco além do necessário, com uma sequência final que, embora seja bonita, mostra-se um tanto desnecessária, AINDA ESTOU AQUI é um filme lindo e importante para os tempos em que vivemos. Principalmente por trazer uma abordagem intimista que nos aproxima ainda mais do contexto histórico que retrata. Um filme que nos lembra da importância de conhecermos nossa história, para que não venhamos a repeti-la. E o cinema, nesse sentido, pode ser uma importante ferramenta política de resgate de nossa memória histórica. Porque certas memórias não podem ser esquecidas. É preciso lembrar sempre.
DITADURA NUNCA MAIS.
*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.