AO CAMINHAR ENTREVI LAMPEJOS DE BELEZA

Por: Breno X. Matos*

“Eu descobri muito por acaso; que o local é o único universo. Toda arte constrói-se sobre ele.”

Todos os cineastas que conseguiram captar e incorporar em suas obras a frase citada acima, de John Dewey, cravaram seus nomes na história do cinema, e Jonas Mekas, assim como Chris Marker, que é provavelmente o seu elo mais próximo nesta síntese, não só conseguiram entender a essência disso, como também cumpriram a difícil missão de, não apenas abordar o tema – o que já é um martírio por si só –, mas materializá-lo numa obra, num filme.

Diversos diretores tentaram ao longo do tempo falar sobre a beleza da simplicidade da vida. Muitos, a meu ver, até conseguiram, a exemplos de Charlie Chaplin, Yasujirô Ozu, Agnès Varda, Jacques Demy, Hayao Miyazaki, e o brasileiro Eduardo Coutinho, cada um à sua maneira; seja cômica, poética ou melancólica, tiveram suas contribuições para isso e, arrisco-me a dizer, que Mekas em Ao Caminhar Entrevi Lampejos de Beleza alcançou este mesmo patamar. E é curioso notar que em boa parte dessas obras, agora olhando para um aspecto mais amplo, que tentam trazer o tema em sua essência, caem nos clichês panfletários de mensagens prontas, e muitas vezes equivocadamente tentam dar lições de moral para pessoas que não conhecem e sequer chegaram a ver. E a grande sacada aqui, é que isso é justamente o contrário do que o diretor vai propor neste filme.

É interessante perceber quanto o cinema muitas vezes vai preferir abordar, através da sua linguagem, uma narrativa mais onírica para chegar ao lírico quando decide falar sobre lembranças, e ao considerar as minhas experiências particulares, este foi, e continua sendo, o caminho mais certeiro nas obras. Essa sensação de que os sonhos são quase irreais, e que se alteram com o tempo de forma inconsciente, fazem parecer eventos que não aconteceram, como se fosse algo que contamos a nós mesmos. Pequenas situações, até bobas, mexem conosco pela força poética das lembranças. É justamente isso que Mekas utilizará como ponto de partida na hora de construir e decupar toda a sua obra, como uma tese para provar a si mesmo que a beleza está no processo, e não unicamente no resultado. A força do filme, muitas vezes, irá se encontrar no sentimento das lembranças que o mesmo irá te causar.

“Acho que vocês já devem ter notado que não gosto de suspense. Quero que vocês saibam exatamente, ou ao mesmo aproximadamente, o que vai acontecer aqui. Embora, como já notaram também, não acontece nada demais de todo modo. Então continuemos, e vejamos. Talvez aconteça algo, talvez. Se não for o caso, perdoem-me, caros espectadores, se nada acontecer, continuemos de qualquer forma. A vida é assim, é sempre mais do mesmo, sempre mais do mesmo. Um dia segue o outro, um segundo segue outro segundo.”

Ao se aventurar nas próprias lembranças através de vídeos caseiros de sua infância, e gravações aleatórias que fez ao longo da vida de coisas que achara bonito, Mekas vai abordar a vida assim como ela é, de forma nua e crua. Com todas as repetições que a própria possui, banalidades, felicidade, tristeza, tédio, raiva e amor; tudo através de pequenas situações reais e lindas imagens que ficam com você, mesmo horas depois que o filme acaba. E o cineasta aqui não esconde em nenhum momento o real propósito da obra, e nem age como se estivesse fazendo o trabalho mais normal do mundo. Apesar de toda a espontaneidade, todos sabemos que é um projeto experimental que não faz o agrado de todos os públicos, mas ao descontruir isso logo de cara, o diretor se sente livre para se entregar as suas emoções, e mostrar que o que ele faz aqui é apenas admirá-la através da lente, e da linguagem, e nos convida a assisti-la juntos.

Nunca se torna repetitivo ou cansativo de uma forma negativa, nunca desgasta, nunca perde sua força motora, porque é notável e palpável a paixão e o amor dentro de cada frame em sua montagem, de cada imagem, de cada trilha, de cada palavra em sua narração. Em alguns momentos, Mekas expõe em tela a frase “Não acontece nada neste filme“, mas a verdade é que absolutamente tudo acontece neste filme; a vida acontece, e ela é tão bela quanto pode ser. Ao Caminhar Entrevi Lampejos de Beleza talvez seja a maior contemplação sobre a beleza desse “nada” que nos rodeia, e a mais bela carta de amor à vida já escrita.

“Tudo o que quero lhe dizer está aqui. Eu estou em cada imagem deste filme, eu estou em cada quadro deste filme.”

*Escritor, crítico de cinema, autor do livro Sobre Pássaros e Caracóis e grande admirador de arte, compartilha seus pensamentos e admiração pelo cinema por meio da página no instagram; Lanterna Mágica.

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