Por Pablo Rodrigues*
TODO FILME É UMA MERCADORIA. Mesmo sendo uma arte, o cinema, assim como as demais artes, está inserido em um modelo de sociedade estruturado por um modo de produção que transforma tudo, inclusive nós, seres humanos, em produto. A própria história da sétima arte nos mostra que a indústria cinematográfica sempre foi utilizada como ferramenta de propaganda, seja para disseminar valores, propagar ideologias ou servir de peça de marketing para o mercado. Até mesmo o acesso ao cinema depende de fatores mercadológicos.
Nesse sentido, BARBIE (2023), adaptação para o cinema em live action da personagem de brinquedo criada pela Matel na década de 1950, é um caso bem interessante e diferenciado. Nele, a diretora Greta Gerwing (LADY BIRD; ADORÁVEIS MULHERES) pega um ícone da cultura pop, representante de um ideal de beleza imposto às mulheres por décadas e consegue, com este material tão controverso, fazer uma sátira deliciosa que, através do uso inteligente da metalinguagem, reconhece seu caráter mercadológico e cinematográfico e se propõe a rir disso, do capitalismo, do cinema e, principalmente, do patriarcado.
Na trama, a “Barbie Estereotipada” (Margot Robbie) vive juntamente com as demais Barbies e os Kens, na Barbielândia, um mundo de brinquedo, idealizado, onde todos os dias são iguais e felizes. Ao menos aparentemente. Em um desses dias, a protagonista começa a ter pensamentos estranhos e apresentar “defeitos”, o que a faz entrar em uma crise existencial que a levará ao mundo real em busca de respostas.
Escrito pela diretora em parceria com seu companheiro, o também cineasta Noah Baumbach, o roteiro do filme utiliza em sua estrutura narrativa uma espécie de “jornada da heroína”, desenvolvendo muito bem o arco tanto de sua protagonista, a Barbie Estereotipada, vivida por Margot Robbie (que nos encanta e emociona), quanto de seu “antagonista”, o Ken vivido por Ryan Gosling (divertidíssimo). Da mesma forma, o roteiro também consegue criar um universo rico e coeso em sua lógica interna. A Barbielândia é um mundo fascinante.
Contribui para isso o excelente design de produção que, somado ao ótimo trabalho de figurino e maquiagem, conseguem dar vida à Barbielândia de maneira muito eficiente. O uso das cores vivas, em especial do rosa, bem como os objetos de cena, todos de brinquedo, que “imitam” o mundo real, criam uma identidade visual coesa e atrativa para o filme. O tom lúdico e nada realista da obra e das atuações do elenco entram em sintonia com sua proposta. O filme ainda conta com inúmeras referências a clássicos do cinema como O MÁGICO DE OZ (1938), CANTANDO NA CHUVA (1952), 2001: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO (1968), MATRIX (1999), dentre outras que surgem de maneira orgânica na trama, sem parecerem forçadas.
Mas o filme não é isento de problemas, já que possui uma narração em voice over, feita por Helen Mirren, que mostra-se redundante e, portanto, desnecessária, pois descreve o que vemos em tela, ao invés de ser um complemento. Além disso, o “mundo real” visto no segundo ato carece de um pouco mais de desenvolvimento. Contudo, estes problemas são mínimos diante das demais qualidades da obra.
No entanto, o que surpreende no longa é mesmo o seu conteúdo temático, o qual traz discussões importantes e até delicadas, de maneira inteligente e com muita sensibilidade. Discutir temas como o patriarcado e as opressões impostas por esse sistema às mulheres de maneira coerente, sem parecer forçado não é tarefa fácil. Fazer isso de forma lúdica, divertida, sem diminuir o peso do debate, como é o caso aqui, é ainda mais difícil. O filme discute machismo, relacionamentos abusivos, alienação social, feminismo e, principalmente, sobre o quão difícil é ser mulher em nossa sociedade. Inclusive, há um monólogo emocionante sobre isso no final do segundo ato.
O roteiro faz questão de abrir mão da sutileza na forma como expõem esses temas, o que pode ser visto como problema para alguns. Porém, nem todo filme precisa ser sutil. Ao contrário, algumas reflexões importantes como as que temos aqui precisam ser escancaradas para o público principalmente diante do atual contexto de crescimento do conservadorismo no mundo, bem como da misoginia da era Red Pill. Contudo, é importante ressaltar que a perspectiva que embasa as discussões do longa são a do feminismo liberal americano, o qual é hegemônico nos Estados Unidos. BARBIE não é, nem se propõe a ser, em momento algum, um filme revolucionário.
Muitas das críticas negativas ao filme usaram como argumento o fato do mesmo ser uma peça de marketing para a Matel vender mais brinquedos. Primeiro, esta questão não é um critério de análise da qualidade cinematográfica desta ou de qualquer outra obra pois, como já citado no início deste texto, todo filme é uma mercadoria. Segundo, BARBIE é sim um produto de marketing, assim como os desenhos da Disney, ou os filmes de super-herói, que são feitos para vender quadrinhos, bonecos e derivados, ou seja, como tantas outras obras da indústria que não são criticadas por isso. Inclusive, o filme da Greta se destaca por não fingir ser algo que não é. Antes, reconhece que é um produto de marketing, porém, usa disso para trazer importantes reflexões para o grande público. Ainda que a Matel também saia lucrando com isso. Essa é uma contradição inerente ao modo de produção capitalista no qual a indústria está inserida, não do filme.
Diante disso, o incômodo causado por BARBIE parece ser de outra ordem, e o fato deste ser um filme blockbuster dirigido por uma mulher, sobre mulheres, que satiriza o patriarcado no cinema mainstream não é apenas um mero detalhe. Não podemos negligenciar a importância de termos uma obra como esta, que consegue trazer representatividade e discussões importantes sobre nossa sociedade de maneira acessível e coerente, com uma mensagem direta para o grande público, mulheres e homens (sim, o filme também é para nós homens).
BARBIE não é um filme revolucionário, nem pretendia ser. Contudo, é uma obra necessária para os nossos dias, escancarando as contradições e mazelas do patriarcado de maneira acessível ao grande público. E se isso contribuir para que, assim como a protagonista, alguma mulher não aceite mais que nada nem ninguém a coloque “de volta na caixa”, nos padrões opressores impostos pela sociedade, ou que algum homem reconheça seu lugar de privilégio na estrutura machista do patriarcado e decida romper com isto, terá valido muito a pena. Pode parecer muito, mas não é, pois a arte, mesmo enquanto mercadoria, pode nos tocar profundamente.
*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.