Por Felipe de Souza*
Um dos últimos suspiros do sempre criativo cinema soviético foi “Cidade Zero”, uma obra de 1988 dirigida por Karen Shakhnazarov. A narrativa acompanha Alexey Varakin, um engenheiro de Moscou, que viaja a uma cidade provincial para uma reunião de negócios. No entanto, ao chegar, ele se depara com uma série de eventos absurdos e inexplicáveis que transformam sua viagem em um pesadelo surrealista.
A influência do cineasta Luis Buñuel é evidente em “Cidade Zero”. Buñuel, um dos mestres do surrealismo no cinema, é conhecido por suas obras que desafiam a lógica e a razão, criando narrativas que exploram os recessos mais profundos da mente humana e da sociedade. Filmes como “O Anjo Exterminador” e “O Discreto Charme da Burguesia” apresentam situações em que os personagens enfrentam eventos absurdos e inexplicáveis, muito semelhantes aos que Varakin encontra.
Buñuel frequentemente utilizava a técnica de inserir elementos incongruentes em cenários realistas, provocando uma sensação de desconforto e reflexão no espectador. Da mesma forma, Shakhnazarov incorpora eventos surreais e personagens excêntricos em um ambiente aparentemente normal, desestabilizando a percepção da realidade e criando uma experiência cinematográfica perturbadora e fascinante.
Com sua direção competente, Karen Shakhnazarov consegue capturar perfeitamente a estranheza e o absurdo da situação em que Varakin se encontra. Ele utiliza planos longos e algumas composições simétricas de forma eficaz, trazendo uma inquietação à obra. As ruas e edifícios da cidade são, por vezes, retratados de forma a trazer desorientação, e os planos em ambientes fechados são claustrofóbicos. A trilha sonora e os efeitos sonoros desempenham um papel crucial, utilizando músicas e sons que frequentemente contrastam com as imagens na tela, ampliando a sensação de desconforto.
“Cidade Zero” costuma ser interpretado como uma crítica velada à burocracia soviética. A cidade e seus eventos absurdos alguns enxergam como uma metáfora para a lógica ilógica do Estado soviético, onde a busca por sentido ou uma saída parece inútil. No entanto, vejo como uma crítica incisiva ao período da Perestroika. A Perestroika, iniciada pelo traidor da classe trabalhadora, Mikhail Gorbachev, em meados da década de 1980, buscava reformar o sistema econômico e político soviético, introduzindo elementos de transparência (Glasnost) e reestruturação (Perestroika). No entanto, essas reformas além de danosas, muitas vezes geraram confusão, incerteza e resistência entre a população.
A cidade surreal e os eventos absurdos em “Cidade Zero” refletem o caos e a incerteza que muitos sentiram durante este período de transição. A burocracia impenetrável e a lógica ilógica enfrentada pelo protagonista Varakin podem ser vistas como uma metáfora para as tentativas de se adaptar às mudanças drásticas e muitas vezes paradoxais que a Perestroika trouxe. A sensação de alienação e desorientação do personagem principal ecoa a experiência de muitos soviéticos que se encontraram perdidos em um sistema que estava rapidamente mudando, mas sem uma direção clara ou previsível.
O filme, ao captar o espírito desse período tumultuado, transmite a sensação de impotência que pode surgir quando se tenta navegar por mudanças estruturais significativas. Assim, “Cidade Zero” não pode ser visto apenas como uma crítica à burocracia, mas também como um comentário sobre os desafios e as falhas inerentes ao processo de reforma durante a Perestroika. O final ambíguo do filme, que deixa o destino de Varakin em aberto, sublinha a natureza interminável e opressiva de sua situação.
Leonid Filatov, interpretando Varakin, oferece uma performance poderosa. Seu retrato de um homem comum preso em uma situação extraordinária é convincente, e a sutileza do ator ajuda a tornar críveis as reações do personagem. Filatov consegue equilibrar perfeitamente a perplexidade e o desespero, tornando fácil para o público se identificar com o personagem. O elenco de apoio também merece destaque, com personagens que variam do estranhamente simpático ao profundamente perturbador, enriquecendo ainda mais a atmosfera surreal do filme.
“Cidade Zero” é uma pequena obra-prima do cinema soviético, que utiliza a estética e a narrativa para explorar temas profundos. A direção de Shakhnazarov, combinada com a atuação impressionante de Filatov, resulta em um filme que é tanto perturbador quanto fascinante. É uma crítica sutil, mas poderosa, ao rumo que a União Soviética estava tomando e uma reflexão profunda sobre a condição humana diante de forças incompreensíveis e incontroláveis.
DIREÇÃO: Karen Shakhnazarov
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*Cinéfilo e Membro do Podcast Cinema em Movimento