CONTO DE FADAS (Crítica)

A tecnologia como fundamento estruturante do cinema crítico pujante

Por Leonardo Lima*

Conhecido pelo firme posicionamento de aversão ao exercício degenerado do poder ao longo da história, o russo Aleksandr Sokurov reforça o tom da crítica em seu mais recente projeto, Conto de Fadas, longa-metragem no qual ele, graças ao uso intenso e inventivo da tecnologia digital, “ressuscita” Adolf Hitler, Benito Mussolini, Joseph Stalin e Winston Churchill, quatro dos mais poderosos líderes políticos de todo o século XX – com participações especiais de Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte.

Exímio artesão da imagem, Sokurov não poupou esforços ao lidar com um amplo repertório de imagens de arquivo reais que revelam ao espectador as facetas pública e privada desses indivíduos, para os quais parecia não haver qualquer pudor em pensar ou agir da forma como lhes aprazia – ora estabelecendo improváveis alianças, ora em inevitável rota de colisão -, mas sempre atuando com vistas à sedução totalitarizante das massas. Ao recriar um fantasioso ambiente no qual esses personagens passeiam de modo errante, uma espécie de purgatório resultante da mistura de A divina comédia, de Dante Alighieri, com o surrealismo plasmático de Salvador Dalí, o diretor nos faz mergulhar, com certa dose de incredulidade, num fantasmagórico conto de fadas em que tudo é possível, até mesmo insólitos encontros, dignos de fazer inveja a Narciso, entre as diferentes versões desses senhores do poder consigo mesmo.

O efeito conseguido por Aleksandr Sokurov igualmente espanta na medida em que, ainda que imersos num contexto de evidente imaterialidade de seus corpos, os personagens aqui revividos em nenhum momento soam distantes daquilo que eles realmente foram em vida. Sua presença em tela é tão marcante e vívida como há setenta anos, quando desfilavam por terras europeias como verdadeiros expoentes da dominação carismática tão cara à sociologia do alemão Max Weber.

Não deixa de ser perturbador pensar que a tecitura da mise-en-scène de Conto de Fadas seja fruto do uso de avançadas técnicas de computação gráfica – sem que se tenha recorrido à deep fake, como gosta de salientar o seu realizador. De tão verossímil, a fisicalidade imagética dos personagens em cena remete à ideia de que mesmo os enterrados há muito putrefatos, poderão, nos dias atuais, voltarem a ser “sólidos” por meios audiovisuais, prontos a tanger homens e mulheres enfileirados em massas amorfas, sem rostos, protagonistas de uma vertente hiper-real de extremismo político a influenciar o mundo fora e dentro da

Há de se fazer, todavia, uma ressalva ao trabalho de Sokurov, que, infelizmente, o impede de ser considerado uma obra-prima contemporânea. Nada que diga respeito a questões de ordem estético-técnicas, certamente o ponto forte do filme. Na verdade, diz respeito à maneira relativamente condescendente, suave e até mesmo bonachona como a figura de Churchill por vezes é apresentada – não à toa, apenas o primeiro-ministro britânico é o único agraciado com a chance de visualizar brevemente a morada celestial, por meio de uma fresta. Tal representação se dá apesar de ele ter sido tão destrutivo como seus companheiros alemão, italiano e soviético, haja vista o colonialismo exercido à época pelo Reino Unido nas terras sob sua égide, de leste a oeste do planeta. Tudo indica que isso ocorre devido à predileção do cineasta por uma visão mais liberal de organização política da sociedade. Possivelmente, Sokurov possui até razão, mas é fato que, esse tom mais amistoso para com um de seus desterrados espirituais, de algum modo contraria a proposta basilar da narrativa de Conto de Fadas.

De todo modo, em tempos de relações humanas cada vez mais líquidas, em vias de escancaramento das portas da pós-modernidade, o filme de Alexander Sokurov nos põe diante da infame encruzilhada entre as maravilhas proporcionadas pelo mundo (pós-)digital e o horror por detrás do emprego intencional  da tecnologia com fins a reanimar velhos fantasmas causadores de alguns dos momentos mais trágicos da humanidade. Mais uma vez, o diretor russo deixa um legado cinematográfico ímpar, uma obra à frente de seus dias, cuja importância social e política no devido curso do devir histórico haverá de obter reconhecimento como um marco do período em que foi lançado.

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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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