Por Pablo Rodrigues*
“É tudo uma piada.
Tudo pelo que as pessoas lutam e dão valor
é uma monstruosa anedota.
Então, por que você não vê o lado engraçado?
Por que não está rindo?”
(A Piada Mortal, de Alan Moore)
O Coringa é um dos maiores vilões das histórias em quadrinhos e arqui-inimigo do super-herói Batman. Criado em 1940 por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane, o Palhaço do Crime se tornou um dos mais icônicos personagens da cultura pop, ganhando diversas versões no cinema ao longo dos anos. No entanto, no filme CORINGA (2019), o diferencial é a proposta de apresentar uma história de origem para o personagem e, através dela, propor uma reflexão acerca do mito da meritocracia liberal capitalista e seus impactos na Saúde Mental da classe trabalhadora.
Dirigido por Todd Philips (SE BEBER, NÃO CASE), o filme constrói um ótimo estudo de personagem aos moldes do que era feito no cinema estadunidense dos anos 1970 e início dos anos 1980, em especial os filmes do cineasta Martin Scorsese, especificamente dois deles, TAXI DRIVER (1976) e O REI DA COMÉDIA (1982). Ambas as obras trazem protagonistas que se esforçam para cumprir aquilo que lhes é exigido pela sociedade capitalista em que estão inseridos, almejando o tão sonhado “sonho americano”. Contudo, por mais que se esforcem, não conseguem sair de sua condição de exploração e adoecimento, terminando por recorrerem à violência. CORINGA segue essa mesma construção narrativa ao narrar a história de Arthur Fleck, um comediante fracassado e com problemas mentais que tenta se adequar à sociedade para obter sucesso e reconhecimento.
Nesse sentido, a escolha do roteiro de situar a trama do filme no mesmo contexto histórico das obras citadas mostra-se uma decisão assertiva, já que o referido contexto coincide com a entrada do neoliberalismo nos Estados Unidos e suas políticas de desinvestimento nos serviços públicos, bem como o retorno do crescimento do conservadorismo no país com a chegada do governo Reagan. Assim, o longa usa desse cenário tanto como homenagem ao cinema da época, quanto como uma alegoria para falar da conjuntura sócio-política atual, a qual possui muitas semelhanças com a da trama, principalmente a época em que a obra foi lançada, a saber, 2019, ano em que ainda estava em vigência o governo Trump. Não à toa o personagem Thomas Wayne (Brett Cullen), pai do jovem Bruce Wayne (futuro Batman), é caracterizado como uma versão do ex-presidente fascista estadunidense.
A direção de Todd Philips reflete este contexto de modo eficiente, com uma estética que emula a fotografia dos filmes dos anos 1970 com toques expressionistas, fazendo uso de ângulos e cenários sutilmente distorcidos, refletindo o estado mental do protagonista (o desalinhamento das calçadas com relação às casas nas ruas; a escadaria que a princípio parece imensa e escura e vai se mostrando menor e mais iluminada à medida que o personagem vai mudando), bem como um uso de uma paleta de cores mais frias na primeira metade da trama, que vai dando espaço às cores mais quentes e vivas ao passo que o protagonista vai incorporando sua persona do Coringa. Assim como a câmera, a qual também acompanha esta mudança, se movimentando cada vez mais ao longo do filme.
No entanto, a força motriz da obra é Joaquim Phoenix. O ator entrega uma atuação espantosa na pele de Arthur/Coringa. Com um trabalho físico impressionante que vai além do processo de emagrecimento, Phoenix encarna seu personagem com intensidade, conseguindo transmitir a perturbação mental do mesmo de modo convincente, sem cair no exagero. Trabalho que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator merecidamente.
“É muito difícil ser feliz o tempo inteiro”.
Contudo, o maior mérito de CORINGA é como o filme consegue desenvolver a temática da Saúde Mental a partir de uma perspectiva mais ampla, fugindo da visão puramente individualista que geralmente vemos em outras obras que abordam esta temática. Na trama, embora Artur já tenha problemas mentais, estes são intensificados pelos problemas sociais que o mesmo enfrenta, como a falta de assistência do Estado, o desemprego, o corte de verbas na assistência médica que lhe retira seus medicamentos, as injustiças e humilhações que vivencia. O protagonista está inserido em uma sociedade que, assim como a nossa, não sabe lidar com pessoas como ele, que não se encaixam nos padrões de “normalidade” construídos e impostos socialmente.
E a narrativa ilustra essa temática de modo interessante, ao vermos, em um determinado momento, o protagonista Artur entrar em um teatro onde a burguesia da cidade de Gotham City está reunida para prestigiar uma exibição especial de cinema. Na tela, vemos uma cena do filme TEMPOS MODERNOS (1936), uma das obras-primas de Charles Chaplin. A referência não podia ser melhor. No clássico de chapliniano vemos o Carlitos, seu icônico personagem, tentando se adequar às transformações da sociedade capitalista industrial ao seu redor, porém, sem sucesso. É exatamente isso o que vemos também ao longo da trama de CORINGA, porém, no contexto neoliberal do início dos anos 1980.
No clássico de Chaplin, mesmo sendo explorado e oprimido pela sociedade ao seu redor, Carlitos ainda consegue encontrar razões para ser otimista com o futuro e sempre se reerguer, colocar um sorriso no rosto e seguir em frente. Por sua vez, Artur reflete outro contexto histórico, ou seja, o de um mundo sem perspectivas de futuro, que passou por uma Segunda Guerra Mundial, pelas armas nucleares, Guerra Fria, Neoliberalismo, as crises do capital, o retorno das ideias fascistas. Um mundo onde não há mais espaço para o otimismo, o sorriso e a esperança para quem é da classe trabalhadora e ainda é considerado “diferente”.
Nesse novo contexto histórico, o “sonho americano” da meritocracia, no qual a classe trabalhadora conseguiria melhorar suas condições materiais de vida e ascender socialmente apenas com o trabalho duro, revelou-se um engodo, uma falácia. O fato é que a imensa maioria das pessoas vivem e morrem sem conseguirem a tão almejada ascensão social, mesmo trabalhando de sol a sol. Apenas o trabalho não é suficiente para esta mudança acontecer se não vier acompanhado de igualdade de direitos e oportunidades justas que possibilitem isso.
Assim, a trajetória do Coringa aqui se alinha ao que a Psicologia Sócio-histórica denomina de “sofrimento ético-político”, o qual caracteriza-se como o adoecimento derivado das injustiças e desigualdades sociais vivenciadas pelas pessoas. E existem muitos Artur Flecks à nossa volta vivenciando este sofrimento diariamente, por não conseguirem se adequar aos padrões adoecedores do modo de produção capitalista. Para essas pessoas, assim como o Coringa, muitas vezes resta apenas o adoecimento e a violência, a qual acaba surgindo como instrumento de insubmissão à ordem social, bem como de libertação.
O Coringa é o Carlitos de nosso tempo que, de tanto ser massacrado e oprimido pela sociedade, percebe suas contradições e decide rir dela e reagir violentamente. Assim, CORINGA mostra-se uma obra cinematográfica poderosa, que nos alerta para o caráter adoecedor da sociedade capitalista neoliberal, a qual pode transformar sorrisos esperançosos em gargalhadas mortais.
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*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.