A força e a violência do homem sertanejo
Por Leonardo Lima*
NOTA: 6,0
Obra seminal do escritor e jornalista Euclides da Cunha, Os Sertões eternizou a máxima de que o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Nove décadas após a publicação do livro-reportagem que marcou a literatura brasileira pré-modernista, e serviu, a despeito de seu viés determinista, como uma espécie de prelúdio à sociologia no país, o cearense Rosemberg Cariry trouxe à cena Corisco e Dadá em 1996, ano no qual o nosso cinema vivenciava o início da chamada Retomada.
À moda de um western adaptado antropofagicamente à realidade brasileira, o longa lança luz sobre o sertão do Nordeste e sua mítica de terra destinada a homens fortes capazes de domar adversidades naturais e sociais impostas de maneira incremente àqueles que ousam viver em meio à caatinga. O cangaço nordestino das primeiras décadas do século XX é evocado como contexto histórico, tendo como protagonista Cristino Gomes da Silva Cleto, que iniciou sua trajetória nômade integrando o bando de Lampião, mas acabaria ganhando destaque próprio com a alcunha de Corisco (ou, ainda, Diabo Loiro). Vivido de maneira intensa e irresistível pelo ator Chico Diaz, Corisco tornou-se emblemático na medida em que foi o último cangaceiro de renome a tombar no chão, praticando selando o fim de uma era rude.
Cingido entre as representações do cangaço como banditismo e heroísmo – não de forma dúbia, mas, antes, destacando as nuances que perfazem a complexidade desse fenômeno social historicamente situado –, Corisco e Dadá tem por mérito maior uma habilidade ímpar da direção de arte em integrar à mise-en-scène elementos que reforçam a ideia daquele lugar como árido e inóspito, no qual vida e morte travam um duelo contínuo pelas pobres almas viventes do sertão. Os blocos narrativos são intercalados por inserções em que cactos, corujas, cobras, carcarás, carcaças bovinas esturricadas pelo abrasivo calor etc. rondam como espectros as personagens – cangaceiros e volantes (as forças policiais do Estado).
Em seu desenvolvimento dramatúrgico, o longa assume dois momentos distintos: na primeira metade, há uma predominância de um estilo mais teatralizado, o qual apresenta o seco solo sertanejo como uma espécie de palco em que todos encenam uma tragédia moderna que vai da violência mais íntima (o sequestro de Dadá e a consequente violação de seu corpo por Corisco) até a violência escancarada perpetrada pelas partes em incessante conflito, tendo a população do interior nordestino como vítima maior dessa peleja sem quaisquer vencedores imediatos – nesse palco, sobra espaço até mesmo para evocar, em tom documental, as poses de Lampião e seus correligionários em frente à câmera do libanês Benjamin Abrahão; na segunda metade, por sua vez, percebe-se uma transmutação da mise-en-scène, que adere a uma encenação mais naturalista, afastando-se da solenidade presente no segmento anterior. Ainda que sinta não haver uma organicidade na maneira como essas metades dialogam entre si, não há prejuízos significativos para a narrativa como um todo, restando apenas certo estranhamento causado no espectador.
Aspecto importante a se enfatizar é o provável fato de que o filme teria dificuldades de ter uma boa recepção do público na atualidade caso o roteiro não passasse por uma revisão no que diz respeito ao modo como, sob uma perspectiva semiótica, os episódios de violência de gênero contra as personagens Dadá (Dira Paes) e Lídia (Virgínia Cavendish) são expostos. Mesmo que consideremos a narrativa romanceada daqueles acontecimentos tome por base, sobretudo, os depoimentos dados por Sérgia Ribeiro da Silva, a Dadá, ainda em vida, é perceptível faltar à encenação proposta pelo diretor algum grau de criticidade, ao nível e por intermédio da imagem, com relação aos crimes cometidos por Corisco e seus homens, consonantes com os códigos de nossa sociedade patriarcal e machista. Não é dada a Dadá a oportunidade de expressar em tela sua dor existencial após sofrer um estupro aos 13 anos, ou, no caso de Lídia, de contestar a calúnia sobre sua suposta infidelidade conjugal, o que lhe acabaria custando a vida; todavia, aos seus algozes lhes é ofertada a possibilidade de demonstrar o arrependimento por seus atos, ou mesmo a tentativa de curar as feridas recorrendo-se à proteção pautada pelo amor redentor.
De todo modo, a despeito de questionamentos de tal ordem – os quais talvez sugiram certo anacronismo analítico, afinal de contas, nos últimos trinta anos, houve um significativo avanço nas discussões acerca da violência cotidianamente vivenciada pelas mulheres –, a importância de Corisco e Dadá para o cinema brasileiro dos anos 1990 é inquestionável, tornando-se necessária a defesa da redescoberta do filme, que volta às salas de exibição neste ano de 2024.
Título original: Corisco e Dadá
Direção: Rosemberg Cariry
Ano de lançamento: 1996
País: Brasil
Duração: 101 minutos
Onde assistir: Cinemas (cópia remasterizada em 4k)
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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!