As estátuas também vivem
Por Leonardo Lima* – direto do Janela Internacional de Cinema de Recife
Nota: 8
Localizado na África Ocidental, o Benin outrora abrigou o Reino do Daomé, um dos mais importantes e duradouros na história de África, cuja mítica foi eternizada através dos relatos produzidos pelos colonizadores/invasores europeus, a exemplo das Agojie, mulheres guerreiras a serviço do rei – sim, aquelas mesmas vistas em A Mulher Rei. No final do século XIX, o reino chegou ao fim após ser derrotado pelas tropas francesas, ocasião esta que também marcou o saque de milhares de objetos e artefatos culturais, levados, sem cerimônia, de seu tropos social de origem para serem expostos em museus na Europa.
Em pleno século XXI, graças aos esforços promovidos por acadêmicos, diplomatas e governantes de Estados-nação surgidos no bojo do processo de descolonização ocorrido no pós-Segunda Guerra Mundial, tais objetos enfim começam a ser devolvidos. Todo esse contexto de pilharia e posterior restituição tardia de um legado cultural permeia Dahomey, curta-metragem documental da cineasta Mati Diop, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim deste ano. Nascida na França, mas de raízes familiares senegalesas – ela é sobrinha do célebre diretor Djibril Diop Mambéty –, Diop evoca em seu filme um discurso assumidamente decolonial, uma vez que não apenas denuncia a colonialidade, expondo suas contradições e o seu desprezo ao Outro, tratado como um mero diferente exótico, afastado dos pilares da civilização ocidental – denúncia essa feita pelos cineastas Chris Marker, Alain Resnais e Ghislain Cloquet no curta As Estátuas também Morrem, de 1953 –, mas vai além, dando voz ao colonizado como protagonista de sua história, permitindo, assim, uma reflexão que leva em conta perspectivas e saberes silenciados pelas estruturadoras colonizadoras.
Para conseguir esse efeito, a diretora recorre, em primeira instância, a um antropomorfismo hipertrofiado, no qual uma das estátuas revela o dom de pensar em voz alta, o que lhe possibilita versar sobre sua experiência desoladora e fetichizada em solo francês, e, ainda, tecer considerações acerca do retorno ao Benin, exprimindo seus sentimentos imediatos quanto a isso e projetando o futuro num país em que, apesar de todo o irreconhecimento identitário causado a quem a observa hoje, ainda, assim, é o seu verdadeiro lugar. É arrepiante ver/ouvir isso em tela, algo sensorialmente único, cuja experiência é expandida pela força do monólogo existencialista emanado de seus lábios.
Num segundo momento, ainda sob o ponto de vista do colonizado, Mati Diop torna o público cúmplice de um debate acalorado no ambiente universitário, em que diversas maneiras de avaliar o repatriamento de objetos e artefatos são trazidas à tona, as quais, antes de serem conflitantes entre si, mais parecem serem peças complementares de um grande quebra-cabeça histórico, marcado, na contemporaneidade, por certa alienação frente àquele patrimônio cultural. Isso é visto, por exemplo, nas cenas que mostram alguns trabalhadores especializados, responsáveis pelo transporte e realocação das estátuas recém-chegadas, olhando-as com certa ambivalência, exprimindo, simultaneamente, admiração e estranhamento com relação a elas. O país se modernizou, a sociedade local vivenciou profundas transformações no modo como se organiza, e é, natural, portanto, que isso implique, ao primeiro contato, no não reconhecimento social dessas relíquias como partes legitimamente constituintes da cultura beninense. O povo faz festa nas ruas pela volta desses símbolos nacionais para a terra da qual nunca deveriam ter saído, mas, no fundo, não se tem uma dimensão mais precisa e profunda da importância histórica de tal evento nas relações sociopolíticas entre Europa e África.
Ainda que não ofereça respostas prontas, Dahomey é muito eficiente em provocar e suscitar o debate, até mesmo de maneira pedagógica. Trata-se de um filme que serve não apenas para fomentar o debate relativo às pautas dos chamados estudos decoloniais, mas, também, poderá ser útil no sentido de educar o povo (do Benin e de outras nações com passado colonial) quanto a reconhecer e valorizar os significados de seus entes culturais, que lhes pertence de fato, pois feitos e refeitos no e através do cotidiano, no tempo real de indivíduos e comunidades compromissados em transmitir um legado.
Título original: Dahomey
Direção: Mati Diop
Ano de lançamento: 2024
País: Benin, França e Senegal
Duração: 101 minutos
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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!