Di Glauber (Crítica)

Morte, câmera, ação: a disruptiva homenagem póstuma de Glauber Rocha a Di Cavalcanti

Por Leonardo Lima*

 Nota: 10,0

Somente o gênio dionisíaco de alguém como Glauber Rocha seria capaz de captar, disruptivamente, os eventos de uma cerimônia fúnebre e transformar o material colhido em uma ode tropicalista capaz de celebrar a vida em suas nuances mais carnavalizantes. É justamente isso que o diretor baiano faz em seu curta documental ensaístico Di-Glauber (1977), fruto de gravações feitas por ele e uma pequena equipe durante o velório e enterro do pintor modernista brasileiro Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo, conhecido simplesmente como Di Cavalcanti (1897-1976).

As cenas filmadas não trazem consigo qualquer novidade em si. Se pensarmos nelas como signos de uma experiência ritualística coletiva, são iguais a tantas outras feitas incontáveis vezes em ocasiões nas quais as pessoas se reúnem para um último encontro, a despedida de alguém cuja existência lhes importava. A genialidade do trabalho de Glauber Rocha reside, na verdade, no modo como ele pega aquele material bruto, mórbido em sua imagética imanente, e o ressignifica no processo de montagem do filme, por intermédio da inserção de uma fulgurosa voz over – a do próprio Glauber -, bem como através da colagem frenética de cenas que prestam um tributo a Di Cavalcanti e sua obra de cores vibrantes, provavelmente a de maior êxito em expressar pictoricamente a brasilidade.

Por falar em Modernismo à brasileira, o Cinema Novo bebia diretamente da fonte espiritual das contribuições vanguardistas levadas a efeito pelos baluartes responsáveis por promover, no início do século XX, abalos sísmicos que reconfiguraram o cenário das artes no Brasil. Sendo Di Cavalcanti um dos promotores da Semana de Arte Moderna de São Paulo, realizada em 1922, a ousada proposta de mise-en-scène que marca Di-Glauber mostra-se condizente com os ideais que levaram os modernistas brasileiros a dinamitar os pilares dos cânones artísticos até então estabelecidos.

Assim, Di-Glauber (re)apresenta Di Cavalcanti às novas gerações sem muita cerimônia, ainda que envolto numa mítica própria, devolvendo simbolicamente o icônico retratista das mulatas ao seu devido lugar no panteão das artes plásticas nacionais. O documentário se revela ainda mais engenhoso ao fazer isso recorrendo a um método narrativo bastante simples, porém eficiente: boa parte da locução reforça a ideia de uma conversa íntima e efusiva post-mortem entre Glauber e Di Cavalcanti, ambos protagonistas do filme, em que são relembrados os momentos mais gloriosos dessa amizade. 

 Se não pôde filmar o amigo ainda em vida, conforme vontade expressa por ele, que desejava ser registrado enquanto executava o seu ofício de ourivesaria pictórica diante das telas, Glauber Rocha foi de uma perspicácia magistral ao homenagear e eternizar Di Cavalcanti por meio de seu ofício cinematográfico, do qual ele, apenas com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, também era um ourives de mão cheia.

Título original: Di-Glauber

Direção: Glauber Rocha

Ano de lançamento: 1977

País: Brasil

Duração: 18 minutos

Disponibilidade: YouTube

*Recifense, 40 anos, sociólogo. Antirracista, aliado do feminismo e das causas indígenas e queer, torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantém no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil no Letterboxd. Integrante do Podcast Cinema em Movimento e dos sites TemQueVer Cinema e Club do Filme.

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