Por Felipe de Souza*
“Dias de Fogo”, dirigido por Haskell Wexler em 1969, é um drama que mistura elementos de ficção e documentário para explorar as tensões sociais e políticas dos Estados Unidos durante os dias que antecederam a Convenção Nacional Democrata de 1968. Confesso que este foi um filme que demorei muito para assistir, mas ele me capturou de imediato, e hoje o considero um dos melhores filmes de todos os tempos. As escolhas de Wexler, com sua experiência como diretor de fotografia, ajudam a criar um ambiente que mistura o caos real das manifestações de 1968 com a narrativa ficcional, utilizando uma cinematografia dinâmica e uma edição ágil que inserem o espectador no centro dos acontecimentos.
A trama acompanha John Cassellis (Robert Forster), um cinegrafista de TV cínico que trabalha em Chicago cobrindo eventos cotidianos e sensacionalistas. À medida que os protestos pelos direitos civis e a Guerra do Vietnã esquentam, John começa a questionar seu papel na mídia e a forma como as notícias são manipuladas. O filme aborda criticamente o papel da mídia hegemônica, o controle da informação e as convulsões sociais de um país em ebulição.
Forster confere autenticidade e profundidade ao seu personagem, que começa como um observador distanciado dos eventos que cobre. Ele representa a apatia e a indiferença do chamado jornalismo imparcial, que, cá entre nós, sabemos que não existe. Durante o desenrolar da narrativa, ele é confrontado com as implicações éticas de seu trabalho, e é neste momento que sua vida cruza com o garoto Harold (Harold Blankenship), que gosta de pombos e vive com sua mãe, Eileen (Verna Bloom).
Bloom entrega uma performance notável. Eileen, uma mãe solo vinda de uma cidade pequena que, pelas circunstâncias, foi levada a viver em Chicago, traz uma vulnerabilidade palpável, e Bloom constrói sua personagem, capturando as dores e as dificuldades daqueles que vivem à margem da sociedade. Com seu olhar expressivo, sua atuação evita estereótipos, humanizando Eileen e tornando-a uma figura central para o filme. A relação entre Eileen e Cassellis não é apenas um arco dramático, mas um reflexo das tensões sociais mais amplas que “Dias de Fogo” explora.
O filme aborda a desconexão entre as elites e o povo, entre os que documentam a história e os que a vivenciam. Explora a fabricação de consenso, onde os meios de comunicação de massa atuam frequentemente como ferramentas de poder, moldando a opinião pública e sustentando o status quo para legitimar as ações das elites dominantes. Em “Dias de Fogo”, essa crítica ganha contornos ao retratar a transformação de Cassellis: de um cinegrafista indiferente, protegido por sua câmera, a um indivíduo que questiona seu papel e se envolve com as realidades que antes apenas documentava. Cassellis se torna não apenas o protagonista, mas um símbolo de uma possível desalienação e subsequente conscientização política.
A questão dos direitos civis dos negros, embora não seja o centro do debate, perpassa a obra e ganha um pequeno, mas forte, espaço. Wexler traz uma reflexão, construindo um momento que parece um documentário à parte, onde ele dá voz àqueles que querem ser ouvidos. O filme parece pausar sua trama central para capturar toda a indignação e revolta contra a opressão e a violência institucionalizada, destacando também a resistência e o desejo de mudança de uma população que enfrenta uma dura batalha contra o racismo estrutural que já durava mais de 400 anos. Essa dimensão acrescenta uma camada extra de complexidade à narrativa, mostrando como as lutas pela igualdade racial estavam intrinsecamente ligadas às convulsões políticas e sociais do período.
A montagem do filme, sob o comando da talentosa Verna Fields (conhecida por seu trabalho em “Lua de Papel” e “Tubarão”), é extremamente eficiente, demonstrando completo domínio do ritmo narrativo. Fields conduz a edição com paciência, permitindo que cada cena atinja seu máximo impacto. Nos momentos finais, durante a Convenção Nacional Democrata, onde a tensão entre policiais e manifestantes atinge seu auge, o ritmo do filme acelera com cortes mais rápidos e frequentes, criando uma sensação de caos e imersão na multidão.
“Dias de Fogo” é uma obra-prima da Nova Hollywood que captura momentos decisivos na história dos Estados Unidos, com as performances exemplares de Robert Forster e Verna Bloom. O filme não apenas documenta uma era de convulsão social, mas também explora o papel que a mídia dominante tem na distorção da realidade, manipulando os espectadores para o interesse da classe dominante. Nesse sentido, ao expor a complexa relação entre mídia, poder e sociedade, Wexler sublinha a necessidade de um olhar crítico, reflexivo e humanista em todos que realmente desejam produzir um jornalismo responsável. É aí que reside toda a força e impacto do plano final, onde, de forma direta e nada sutil, ele cria uma analogia poderosa entre um sniper e um cinegrafista.
DIREÇÃO: Haskell Wexler
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*Cinéfilo e Membro do Podcast Cinema em Movimento