Entre Mulheres: Uma longa conversação que vislumbra a árdua condição de um passado Pré-MeToo

Por Sthefaniy Henriques*

Nomeado a Melhor Filme e vencedor de Melhor Roteiro Adaptado no Oscar 2023, Entre Mulheres é um aclamado drama dirigido por Sarah Polley, diretora em seu primeiro grande trabalho por detrás das câmeras. Nome novo, porém promissor para a produção, Polley anteriormente já demonstrou boa aptidão ao adaptar o livro de Margaret Atwood, Alias Grace, para um roteiro televisivo. Voando mais alto, em Entre Mulheres ela não apenas dirige, mas assina o roteiro com sustento em um livro de mesmo nome, escrito pela canadense Miriam Toews, projeto que se define como uma resposta imaginada a eventos reais ocorridos em uma comunidade menonita isolada que ainda se situa na Bolívia.

Ambientado em pouquíssimos cenários, sobretudo, em um celeiro degradado, um grupo de mulheres escolhidas a dedo por outras mulheres, recebem a função de decidir o que será da população feminina após a descoberta de que várias delas estavam sendo entorpecidas e agredidas sexualmente – inúmeras vezes – por membros homens da comunidade.

Tal situação se dá a partir da decisão dos homens de deixar momentaneamente a colônia para defender os estupradores de poucas mulheres em fúria, concedendo-as um prazo de dois dias para que as mesmas perdoassem os acusados senão seriam expulsas do céu e da colônia. As mulheres, para decidir tal impasse, optam por uma votação com três alternativas, solução que tem como resultado final um empate, descartando a escolha ‘‘perdoar’’.  Dessa forma, um pequeno grupo – como delegados nas eleições dos Estados Unidos, representantes do povo – tem o poder de uma decisão vital: Decidir se todas devem ficar na comunidade e lutar por uma restauração ou deixa-la para construir, bem longe daquele lugar, um local seguro onde possam existir sãs e salvas.

Entre Mulheres é ume exame poderoso sobre a relação da religião e a sua intrínseca opressão às mulheres. Entretanto, a produção não se limita as mesmas temáticas que Miriam Toews abordou em seu livro. Em uma entrevista em 2018 para a The Guardian, Toews, segunda filha de pais menonitas do Canadá, fala que escreveu o livro por sentir a urgência de verbalizar o que poderia ter acontecido com ela e seu medo em relação a supressão de meninas e mulheres, principalmente em países autoritários de pensamento fundamentalista. Enquanto a autora mantem uma clara posição que denuncia os perigos do fundamentalismo, a adaptação de Sarah Polley voltar-se a uma universalidade de temáticas que fazem parte do mundo feminino, mundo aberto onde eu consigo enxergar o Movimento #MeToo e a colisão de impacto geracional que uma série de denúncias pode fazer. 

O olhar para trás em uma fábula onde os abusos permanecem no passado

Em uma entrevista para a Entertainment, Sarah Polley afirmou que Entre Mulheres não deveria ter um tom documental ou ser um drama sombrio, seu objetivo principal era transmitir para nós, espectadores, a sensação de estarmos acompanhando uma história contada a partir de uma personagem que encontra um cartão postal desbotado, objeto que aciona uma memória pronta para revisitada, compartilhada. O cartão postal parece se revelar como uma fotografia deteriorada de mulheres em sua comunidade, um retrato que omite, em que não se é perceptível os silenciosos tormentos vividos durante a noite por cada uma delas, apenas sua consequência e/ou alegres feições pela manhã seguinte, momento onde encontravam uma maneira de sorrir em meio as atividades do dia-a-dia e família.

Com as cores frias e acinzentadas da fotografia, a narração de Auntie amplia a dimensão entre o ocorrido e o relatado, nos realocando a um cenário no qual a própria Polley define como uma fábula. Sobre isso, Polley fala especificamente sobre situar a produção em um ‘‘reino de uma fábula’’, não elaborando a ideia, mas possivelmente indicando a construção de tempo e espaço, apresentados por Oswaldo Portella, como condicionantes da unidade de ação. A localização, sempre de fácil descrição e com simplificações das dinâmicas, é voltada para o assentamento espacial do conflito que, no caso de Entre Mulheres, é imprescindível. A moralidade deixada sempre ao final de uma fábula, nesse caso, só poderia ser alcançada quando manifestado, mesmo que breve, a importância do local para sua mensagem final.  

Tal fábula não chega a deter uma alegoria, mas é de fácil percepção que seu conteúdo ultrapassa a relação das mulheres com a religiosidade. Como Polley defendeu, a comunidade isolada e muito homogênea é uma versão extrema do que vemos acontecer o tempo todo em nossa sociedade. Já Frances McDormand, atriz e produtora executiva do filme, deu uma perspectiva mais concentrada em relação ao campo aberto de Polley, McDormand afirmou que Entre Mulheres a ajudou a livrar-se de uma crise existencial em relação ao movimento MeToo.

Assim como Frances, eu não consigo dissociar Entre Mulheres da coalisão surgida após a exposição pela New York Times de inúmeras alegações de abuso sexual contra o produtor e fundador da companhia de distribuição Miramax, Harvey Weinstein. O relatório de Jodi Kantor e Megan Twohey, após um árduo trabalho de convencer algumas das vítimas de Weinstein, abriu espaço para que outras mulheres, seja do cinema ou que não possuíssem nenhum tipo de relação com o estrelato, expusessem seus abusadores, falassem sobre seus casos e buscassem por mudança.

‘‘Nós não falamos sobre nossos corpos. Então, quando algo assim aconteceu, não havia linguagem para isso. E sem linguagem para isso, havia um silêncio aberto. E naquele silencio escancarado estava o verdadeiro horror’’

Auntie, uma das jovens meninas abusadas, sinalizou tal cenário da comunidade ao falar sobre os horrores cometidos por lá. Uma pontuação extremamente forte e que faz completo sentindo, principalmente quando os abusos eram anulados pelos homens em duas frentes que atuavam em conjunto: primeiro, a culpa dos estupradores era desviada através do convencimento, da negação da realidade das vítimas e, em um segundo momento, uma espécie de solução para possíveis questionamentos era realizada, a transportação da culpa do estuprador para a vítima sob o argumento da padecedora ficar sujeita as forças do mal ou ter uma fértil imaginação feminina selvagem.

A cultura do silêncio aparenta agir na comunidade dessa forma, mesmo que as mulheres buscassem relatar para seus superiores tal acontecimento que ainda não entendiam completamente, mas sentiam-se estranhas e enfermas a respeito, suas contestações eram retalhadas desde o início, era-se criado mecanismos para a continuidade dos atos malefícios que deixavam, sobretudo, as mulheres caladas.

Foi esse mesmo poder do silencio, especificamente da compra dele ou da conquista através de poderosos contatos – prejudicando a carreira de mulheres que desejavam contar sobre seus casos –, que construiu a imponente e gloriosa cidade dos sonhos, também conhecida como Hollywood, um lugar que não está isolado como a colônia, mas de característica semelhantes: homens no centro do poder reproduzindo sexismo e misoginia ao ponto de crimes se tornarem atributos do local, tornaram-se normalizado. Centro das atenções, visível e observado em escala global, Hollywood sempre soube esconder – até certo momento – seus errôneos aspectos e crimes mais hediondos, mas apenas uma coisa precisou ser feita para que ela se transformasse.

O que começou com uma ponta do iceberg (Harvey), relevou outros nomes como o do ator Kevin Spacey, o diretor James Toback, o produtor Brett Ratner e outras centenas de acusados, isso apenas na televisão e no cinema, que mesmo não considerados culpados – vários por terem o processo ainda em andamento, dado a recentidade do Me Too –, foram demitidos, inviabilizados de outras progressões na carreira e caíram na justa rua da amargura. Uma ínfima resolução se pensada na má conduta, mas que já indica um inicio de algo, de uma transformação.

E é exatamente essa ‘‘transformação’’ que eu enxergo em Entre Mulheres e na sua narrativamente sobre um passado recente.  Entre Mulheres é uma fábula onde, na minha perspectiva, não se volta para um presente onde se vislumbra uma utopia, onde Hollywood se ver livre dos homens que a criou como um lugar hostil, opressor e cruel para mulheres, mas em um ambiente onde, dessa vez, as mulheres tem voz e poder de ação, conquistado após um simples, mas difícil ato quando feito pela primeira vez: falarem.

Falar deu as mulheres da colônia, além de uma calmaria, uma nova perspectiva em relação a suas vidas, mas o fato de deixar e de deixar algumas mulheres na Colônia aponta a clara noção de que não houve um rompimento de vez com a cultura. Do mesmo modo, falar abriu uma ampla possibilidade para que mulheres de Hollywood ou que fizeram parte de Hollywood buscasse justiça e paz quanto aos seus casos, mas não mudou completamente a Industria.   

O passado em uma perspectiva de presente onde se vive dias melhores foi apenas um despertar, um início de uma contrarresposta para combater homens impuníveis. É claro, vivemos dias melhores e Hollywood também após o impacto do MeToo, no entanto, ainda há muito a ser feito para assegurarmos que a história de Sally ganhe uma outra alternativa de final: aquela no qual as mulheres, além de falarem, permanecem e lutam com todas as suas forças contra as estruturas retrógadas, abusadoras e quem as asseguras.

*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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