“ESTRANHO CAMINHO” E A BUSCA PELO AFETO (CRÍTICA).

Por Pablo Rodrigues*

“Que estranho caminho eu tive que percorrer para encontrar você, pai”

(David, em ESTRANHO CAMINHO)

O ser humano é um ser social. Nos constituímos enquanto pessoas em nossas relações uns com os outros e com o meio social no qual estamos inseridos. No entanto, recentemente, com a chegada da pandemia de COVID-19, fomos forçados a nos isolarmos e, para além do sofrimento causado pela doença, este isolamento acabou nos fazendo atentar, ainda que de forma compulsória, para nossas carências afetivas. Nunca sentimos tanta falta do toque, do corpo, do afeto, quanto neste período recente de nossa história contemporânea. É nesse cenário que o cineasta cearense Guto Parente situa a trama de seu mais novo filme, ESTRANHO CAMINHO, a fim de refletir sobre a importância do afeto em nossas vidas.

Parcialmente inspirado na história do próprio diretor, o longa é um drama fantástico que acompanha David, um jovem cineasta que visita sua cidade natal, Fortaleza, para apresentar seu mais novo filme em um festival de cinema. No entanto, é surpreendido pelo rápido avanço da pandemia de Covid-19 e se vê obrigado a procurar abrigo na casa de seu pai, Geraldo, um sujeito peculiar com quem David não fala ou tem notícias há mais de dez anos. Após o reencontro dos dois, coisas estranhas começam a acontecer.

Dirigido com muita competência por Guto Parente, o filme bebe de grandes referências cinematográficas para criar um drama surrealista sensível e tocante. Nesse sentido, a escolha em situar a trama no período de início da pandemia (o mais crítico) mostra-se muito acertada para essa proposta. Assim como em O ANJO EXTERMINADOR (1962), obra-prima do cineasta mexicano Luis Buñuel, onde uma força invisível força os personagens a permanecerem confinados em uma mansão, ESTRANHO CAMINHO faz algo semelhante, com a pandemia exercendo essa função de impor aos protagonistas um confinamento que força pai e filho a conviverem juntos e, consequentemente, colocarem pra fora seus conflitos.

Contudo, diferente do filme de Buñuel, em ESTRANHO CAMINHO esta força invisível não é um elemento surrealista ou fantástico, ao contrário, é algo concreto, objetivo, ou seja, uma pandemia. O surrealismo presente na trama não vem de um elemento surreal que interfere no real, mas sim das consequências psicológicas da realidade objetiva no protagonista. É como se o longa unisse, por mais paradoxal que pareça, realismo e surrealismo. No entanto, a influência surrealista é predominante, em especial do cinema de David Lynch, contribuindo para a criação de uma atmosfera de estranheza que reflete muito bem o estado emocional tanto do protagonista quanto de muitos de nós durante o contexto da Covid-19.

Para isso o filme usa de uma fotografia que privilegia as sombras, os contrastes, refletindo o estado emocional dos personagens, além de uma predominância de planos mais fechados, que reforçam a sensação de claustrofobia tanto física quanto emocional vivida pelo protagonista. É interessante como os personagens centrais, pai e filho, dificilmente são enquadrados juntos no mesmo plano, o que acaba representando visualmente o distanciamento entre os mesmos. Além disso, o uso predominante do azul mais escuro tanto no filtro da fotografia como nos cenários se alinha perfeitamente com o contexto da trama, já que esta cor representa, no contexto do filme, sentimentos depressivos.

Outro elemento interessante é como o roteiro usa o próprio cinema como a ferramenta de aproximação entre os personagens. David volta à sua cidade natal, Fortaleza, por causa do cinema, ou seja, para apresentar seu novo filme em um festival. E ainda que seja a pandemia que force ele e seu pai Geraldo a ficarem confinados juntos, é o filme de David que faz com que ambos consigam um momento de entendimento e afeto, ainda que tímido. Ao mesmo tempo, o filme acaba mostrando-se também um exercício de metalinguagem, já que o protagonista é uma espécie de alter ego do diretor Guto Parente, o qual usa de seu longa para se reconciliar afetivamente com seu pai da vida real.

E a dupla de atores centrais está ótima. Lucas Limeira está muito bem como David, numa atuação contida, que reflete bem os medos e angústias de seu personagem no ambiente em que se encontra, seja na casa de seu pai ou de volta à própria cidade natal. Já Carlos Francisco rouba a cena como Geraldo, numa excelente composição de um personagem obsessivo, rude, imprevisível, porém, ao mesmo tempo, com toques cômicos muito bem inseridos. Uma atuação que lhe rendeu o Prêmio de Melhor Ator no último Festival do Rio e no Festival Internacional de Tribeca.

O roteiro faz uso de uma boa reviravolta em seu ato final, a qual não é previsível e cujas pistas percebemos que estavam inseridas ao longo de toda a narrativa. No entanto, o longa quase cai no sentimentalismo forçado e por pouco não estraga a cena do “reencontro” entre pai e filho. Além disso, o primeiro ato possui um ritmo um pouco problemático, mas que melhora significativamente quando passamos a acompanhar o confinamento de David e Geraldo.

Único representante brasileiro no Festival de Tribeca 2023, onde foi premiado nas categorias de Melhor Filme, Melhor Roteiro para Guto Parente, Melhor Fotografia para Linga Acácio e Melhor Performance para Carlos Francisco, ESTRANHO CAMINHO é um filme sensível e emocionante que nos lembra o quanto que precisamos uns dos outros. Como a busca pelo afeto nos move, até mesmo inconscientemente. Da mesma forma o longa nos lembra também como pode ser doloroso o abandono e a ausência deste afeto. Só espero que não precisemos de outra pandemia para percebermos isso.

Distribuição: Embaúba Filmes

Quer receber conteúdo do TemQueVer no Whatsapp? (Clique aqui)

Quer escrever para o TemQueVer? Entre em contato conosco através do chat de nossas redes sociais (Instagram e Facebook) ou pelo email temquevercinema@gmail.com

*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.

Comente