FLOW

Da Letônia para o mundo, um novo clássico da animação

Por Leonardo Lima*

NOTA 9

Às margens do gélido Mar Báltico encontra-se a Letônia, um dos quinzes Estados-nação que resultaram do colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) no início dos anos 1990. A história do cinema letão, embora eclipsada por cinco décadas de hegemonia das produções soviéticas de matriz russa (isto é, oriundas de Moscou), relegou importantes nomes à arte cinematográfica, dentre os quais destacamos o aclamado Sergei Eisenstein (nascido na capital Riga), Aleksandrs Leimanis, Juris Podnieks, Jānis Streičs, Viestur Kairish e Laila Pakalniņa.

Por maiores que tenham sido as contribuições desses cineastas, nenhum outro talvez tenha dado tanto orgulho ao povo letão quanto o jovem Gints Zilbalodis, de apenas 30 anos, diretor do longa-metragem animado Flow (Straume, título original), ganhador do Globo de Ouro e do Oscar de Melhor Animação, premiações inéditas para o país na cena cinematográfica mundial. Observa-se em toda a Letônia, hoje, um sentimento único de orgulho nacional, com o protagonista do filme, um esguio gatinho preto (ou seria cinza escuro?) tornando-se um dos grandes símbolos locais – a princípio ele era chamado apenas de Gato, mas o clamor espontâneo do público levou os produtores a adotarem o carismático nome de Flow, de grande apelo sonoro, similar ao de felinos inesquecíveis como Garfield, Gato de Botas, Tom, Gato de Cheshire, Bichento e Frajola.

Flow é o resultado do trabalho artesanal de Zilbalodis e sua pequena equipe utilizando o software de código aberto Blender, voltado para modelagem em 3D. O que se vê em tela são personagens e cenários cujas características dos traços mesclam a maleabilidade do cartoon com o realismo fantástico da narrativa de teor minimalista, garantindo, assim, um espetáculo visual que agrada a pessoas dos mais distintos perfis, ávidas (mesmo que não saibam) por representações que as conectem à simplicidade primordial dos desenhos feitos em cavernas pelos nossos ancestrais hominídeos, desenhos estes que carregam consigo a ideia de uma certa arte universal pré-histórica, mediada pelo inconsciente coletivo de uma espécie emergente em sua livre interação com a natureza. Deste modo, sem muitos recursos, mas com habilidade ímpar, os criadores de Flow realizaram um pequeno milagre por intermédio de uma ferramenta tecnológica cujo uso pode ser customizado conforme a necessidade de quem a emprega. Uma ideia na cabeça e um software à mão nunca foi tão verdade como nesse caso da animação letã.

Com o protagonismo posto unicamente sobre os ombros de animais visualmente não antropomórficos (isto é, que não assumem feições nem comportamentos imediatamente humanos), a animação se destaca pelo fato de não possuir diálogos, fator decisivo para a sua rápida e ampla distribuição à medida em que ia ganhando elogios e prêmios mundo afora, bem como para a apreensão de seu subtexto (multidimensional, diga-se de passagem). Assim, além do gato, o peculiar elenco do filme é composto por alguns cachorros, uma capivara, um lêmure, uma baleia e um bando de pássaros-secretários, os quais precisam lidar com uma inundação catastrófica que ameaça a existência de todos – impossível não associar tal mote com os acontecimentos descritos no livro bíblico de Gênesis envolvendo Noé e sua família, inclusive com a presença de um barco que, aqui, serve de analogia à arca redentora do Antigo Testamento.

O mundo no qual Flow se passa é completamente alheio à presença de humanos; no entanto, em que pese esse desolador cenário pós-apocalíptico, subjaz ao filme um extenso panorama da experiência humana no planeta Terra. Isso ocorre, de maneira mais evidente, através dos elementos que diretamente aludem às pegadas deixadas por nós no que diz respeito ao âmbito da cultura, a exemplo das inúmeras estátuas representando gatos em meio à paisagem e da suntuosa cidade em estilo bizantino, toda inundada, sob o escrutínio dos animais. Mas se dá, também, considerando-se as emoções dos animais frente à necessidade de eles terem de superar as enormes diferenças entre si com vistas à manutenção da vida, o que, contextualmente falando, tratava-se do bem comum maior para todos aqueles que integravam a inusitada comitiva no barco à deriva.

E não estranhe o fato de falarmos sobre as emoções demonstradas pelos animais, similares àquelas exprimidas pelo Homo sapiens. Em 1872, o naturalista britânico Charles Darwin já apontara isso em seu livro A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais. Assim, em meio às tensões naturais decorrentes da situação trágica em que se encontravam, vemos, a partir da perspectiva do gato, as personagens sendo forçados a estabelecer formas de convivência que lhes eram inéditas – formas estas que podem colidir ou ir ao encontro de sua natureza instintiva, e terminam sendo responsáveis por gerar a dinâmica sui generis que movimenta toda a trama do longa animado.

Senciência seria uma boa palavra para resumir o sentir, o perceber e o manifestar de sentimentos que permeiam as microrrelações em Flow. Desprovida de um único vocábulo, o filme de Gints Zilbalodis finca a âncora de sua narrativa em um terreno rico em abstrações (como felicidade, egoísmo, cooperação, gratidão, luto, empatia, amizade etc.), as quais ganham contornos concretos graças à desenvoltura com que os animais expressam aspectos muito caros à própria condição humana – isso sem abrir mão de quem eles são, mas mostrando-se dispostos a rever o curso de suas ações em relação ao fluxo da vida. Interpretações múltiplas sobre aquilo visto em tela são possíveis; indubitável, porém, é o fato de que estamos diante de uma obra que veio para cravar o seu nome na história da animação, algo natural em se tratando de uma obra-prima contemporânea.

Título original: Straume

Direção: Gints Zilbalodis

Ano de lançamento: 2024

País: Letônia, França e Bélgica

Duração: 85 minutos

Disponibilidade: Cinemas

*Recifense, 40 anos, sociólogo. Antirracista, aliado do feminismo e das causas indígenas e queer, torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantém no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil no Letterboxd. Integrante do Podcast Cinema em Movimento e dos sites TemQueVer Cinema e Club do Filme.

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