Guia pessoal para os primórdios do cinema

Por Gustavo Rezende*

Nos anos de cinefilia de 2022/2023 estou me dedicando em conferir a fundo os primórdios do cinema. Toda história tem um início e o início do cinema foi em 1895, quando os irmãos Louis e Auguste Lumière projetaram um filme pela primeira vez, em um café em Paris, o “Empregados deixando a Fábrica Lumière” (Sortie de L’usine Lumière à Lyon, 1895) criado por Louis Lumière é considerada a primeira obra a ser projetada, um curta-metragem que contava com 45 segundos de duração. Assistindo a obra disponível desses irmãos franceses geniais, deles e seus seguidores (diretores que eram por eles produzidos no Estúdios Lumière), um que particularmente gostei bastante pela beleza da filmagem é “Lançamento de um navio” (1896) dirigido por Louis Lumière, por ser basicamente a mesma pegada documental da grande maioria de suas obras. Assisti por volta de 150 obras dirigidas por eles, disponíveis em sites como youtube, dailymotion e vimeo.

Lançamento de um Navio:

Um dos pupilos dos Lumière, o fotógrafo francês Alexandre Promio disse, ao final do vídeo Panorama do Grande Canal visto de um barco (1896) que foi o primeiro “panorama” feito e essa tradição teria começado aqui mesmo, em Veneza na Itália. Com muitas dezenas de filmes disponíveis, o tom documental lumièresco continua, mas com Promio foi elevado, filmando muitas paisagens e com a câmera em movimento, como se fosse a visão de um turista passeando pelo mundo. Isso é o tal do “panorama”, muito executado no final do século XIX e início do século XX, mas esse aqui me marcou muito, não por ser o primeiro, mas por ser realmente belíssimo, uma obra-prima.

Panorama do Grande Canal visto de um Barco:

Outro dos pupilos dos Lumière, o farmacêutico e fotógrafo francês Gabriel Veyre, trabalhou pros irmãos principalmente na Indochina, no Marrocos e no México onde filmou, dentre outras coisas, o presidente mexicano Porfirio Díaz nas atividades diárias. Com pouco mais de 50 filmes disponíveis, o mais ilustre filme de Veyre é o polêmico Crianças reunindo moedas espalhadas por mulheres ocidentais (1899) que mostra a cruel face do colonialismo, onde crianças vietnamitas pegam moedas no chão, jogadas festivamente por duas damas da alta sociedade francesa.

Crianças reunindo moedas espalhadas por mulheres ocidentais:

Mas o meu filme favorito de Veyre não é nenhum desses que mostra a cruel realidade do mundo, apesar de serem obras-primas, mas sim o Duelo de pistola (1896), que recria ficcionalmente um duelo de cavalheiros da nobreza francesa, filmado no México, e parece tão real quanto os outros curtas dele que são.

Duelo de Pistolas:

O ilusionista, psicólogo, professor, astrônomo, inventor e um dos pioneiros do cinema britânico George Albert Smith, ou apenas G.A. Smith, também escreveu seu nome na história do cinema da virada do século. Assisti por volta de 30 filmes dele disponíveis e acho o ultra-romântico curta O Beijo no Túnel (1899) uma das grandes delicinhas da época: um casal compartilhando um breve beijo enquanto seu trem passa por um túnel. O escuro do túnel é feito cenograficamente, com o início do curta e final tendo filmado trens de verdade,  um curta de estúdio mas também com filmagens em locações externas. Fez tanto sucesso que até foi refilmado meses depois.

O Beijo no Túnel:

Inventor, G.A. Smith também apostou no cinema colorido experimental da virada do século, retratando fogos de artifício, cores e luzes em pleno 1900! Uma restauração de 2011 tentou reviver o brilho e o impacto das cores por meio da reprodução digital e a cópia original do arquivo do filme está no Museu Nacional do Cinema. Numa das versões disponíveis do curta foi inserida a música Clair de lune, o que aflora um lado também poético na exibição das cores. Se não é obra-prima.. não sei o que é. 

Grande exibição de fogos de artifício de Brock no Crystal Palace:

Alice Guy-Blaché, a diretora francesa que ajudou a estabelecer o básico da linguagem cinematográfica, reverenciada como a primeira diretora e roteirista de filmes de ficção e vista como uma grande visionária no uso da sincronização de som com imagem, além de outras áreas como na colorização, no uso de efeitos especiais e na utilização de elenco interracial, dirigiu mais de mil filmes durante 20 anos de carreira e administrou seu próprio estúdio de cinema, com pouco mais de 90 filmes disponíveis atualmente para podermos assistir. Um dos que mais gosto é A partida de Arlequim e Pierrot (1900), onde o Pierrot foi preterido pelo Arlequim de acordo com a Colombina, um clássico dos carnavais encenado no cinema em 1900 somente por mulheres, o que poderia ser mais moralmente revolucionário que isso?

A Partida de Arlequim e Pierrot:

Mèliés é Mèliés, né.. O maior(?) gênio do cinema silencioso, inovador no uso de efeitos especiais, das técnicas como o stop-motion (técnica que utiliza a disposição sequencial de fotografias diferentes se tornando imagem em movimento) e foi um dos primeiros cineastas a usar exposições múltiplas, dissoluções de imagem, filme colorido e uso de storyboards (criar as cenas primeiro na papel como um tipo de roteiro visual). Do Méliès, “mágico de cinema”, pude conferir várias obras, mais de 100 e destaco pessoalmente uma pequena pérola, A Sereia (1904), que me emociona e me encanta com bastante maestria.

A Sereia:

Na mesma época, outro estúdio de cinema francês, a Pathé (ou Pathé Frères) enfatizava a pesquisa, investindo em experimentos tais como filmes colorizados à mão e sincronização das gravações do filme e do som. Em 1908, a Pathé inventou o noticiário, o qual foi exibido nos cinemas antes do longa-metragem e os clipes de notícias destacavam o logotipo da Pathé, com um galo cantando no início de cada rolo de filme. Na primeira década do século XX, surgiu o altamente criativo espanhol Segundo de Chomón, diretor de fotografia e roteirista, produziu muitos curtas-metragens na França e foi comparado a Georges Méliès, devido a seus frequentes truques de câmera e ilusões de ótica. Considerado o diretor de cinema silencioso espanhol mais significativo no contexto internacional, gostei muitíssimo de conhecer seus mais de 90 filmes disponíveis, apreciei sua obra por flertar bastante com o surrealismo e com o terror. Um dos meus favoritos é A Casa Enfeitiçada (1907), que usa boas doses de terror e animação stop-motion, trazendo uma história de uma casa assombrada bizarra mas bem divertida.

A Casa Enfeitiçada:

Outro grande curta, igualmente divertido pra mim, é O batedor de carteiras não teme algemas (1909), também dirigido por Segundo de Chomón, outro dos meus curtas favoritos da primeira década e usa com maestria a edição para transformar o ladrão em um super-herói, algo fora do humano, e traz um final surpreendente.

O batedor de carteiras não teme algemas:
Nota:

Todos esses cineastas pioneiros citados possuem a maior parte de suas obras disponível gratuitamente na internet. É só seguir o meu perfil no Letterboxd (rede social de cinéfilos) e clicar na minha resenha sobre o filme, que sempre deixo o link para você assisti-lo, direcionando para algum dos sites: YouTube, Dailymotion e Vimeo. Fazendo uma busca na internet com o título do filme junto com o nome do diretor também é outra forma fácil de conseguir assistir essas obras, por isso indico pra ponto de partida a própria plataforma Letterboxd (ou mesmo o site IMDb) pois tem a filmografia desses pioneiros e qualquer ajuda também pode falar comigo nas redes sociais. Boa diversão e viva o surgimento do cinema!

 

*Cinéfilo, ator e um dos criadores no Facebook do grupo de cinema Cinemaníacos Proscritos, do grupo de fanáticos Bondmaníacos Brasil e as respectivas páginas de Instagram: Cinemaníacos Proscritos, Bondmaníacos Brasil

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