A falta de fé na heresia cinematográfica em escala integral
Por Leonardo Lima*
NOTA: 6,0
Do grego hairetikós, que significa “escolha”, herege denomina a pessoa que, deliberada e conscientemente, questiona ou contradiz determinados dogmas religiosos. A origem etimológica do termo vai ao encontro daquilo proposto pelos diretores Scott Beck e Bryan Woods em Herege, terror sacropsicológico da A24 que tem causado burburinho devido à atuação de Hugh Grant, tida por muitos como a melhor da carreira do ator britânico.
No filme, Grant interpreta Mr. Reed, um recluso sexagenário que recebe a visita de duas jovens missionárias, Sister Barnes (Sophie Thatcher) e Sister Paxton (Chloe East). Ambas as personagens se dedicam voluntariamente à prática do proselitismo, tendo como missão propagar de casa em casa a doutrina da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, movimento religioso surgido no século XIX a partir das profecias reveladas por Joseph Smith Jr. no Livro de Mórmon.
Soa curioso que a espinhosa temática da heresia seja abordada levando-se em consideração o universo religioso do mormonismo, o qual, segundo a hegemônica perspectiva sedimentada nas teologias católica e protestante, representaria uma afrontosa heresia nascida no seio do cristianismo moderno. Sem dúvida, uma interessante escolha de roteiro, que foge ao óbvio e contribui narrativamente para a estranha e intrigante caracterização de Mr. Reed, espécie de Prometeu desacorrentado que se dispõe a apresentar àquelas moças a chama do conhecimento que lhes permitiria ser libertas do controle de deuses de natureza demasiadamente humana.
A primeira metade de Herege funciona muito bem, e tal êxito em muito se deve ao minimalismo dos espaços em que a ação decorre, fator crucial para se adensar a atmosfera de tensão em meio a um envolvente embate dialógico entre as personagens, fundamentado sobre bases dialéticas. É justamente quando a estrela de Grant mais brilha em cena, expondo a sua personagem como um grande conhecedor da história universal das religiões. Mr. Reed não se fecha hermeticamente em seu saber teológico, mas, antes, é hábil em tecer associações metafóricas recorrendo inesperadamente a elementos da cultura pop, tais como o jogo de tabuleiro Monopoly e a banda de rock indie Radiohead.
No entanto, à medida que a história avança, a maneira como a força de sua narrativa vai se esvaindo beira o inacreditável, encaminhando o filme rumo a uma convencionalidade já vista em tantas obras do gênero. Por ser algo que não se dá subitamente, o espectador persevera em sua esperança de que uma mísera fagulha a qualquer instante seja capaz de reacender o fulgor inicial; porém, isso acaba não acontecendo, gerando-se o sentimento de que uma ótima oportunidade foi perdida. Pior mesmo é saber que desdobramentos narrativos outros, mais criativos e gratificantes à consciência, poderiam ter ocorridos caso alguns elementos cênicos, a exemplo do porão e da maquete de madeira do imóvel, tivessem sido utilizados de modo mais orgânico ao que realmente se espera de um filme de terror.
De todo modo, ainda que traga consigo um déficit no que diz respeito à forma como lida com aspectos do cinema de gênero, evidenciando, assim, dificuldades em materializar suas promissoras premissas em uma história representativa do horror que é submeter-se cegamente aos dogmas da fé, Herege tem como mérito sua tentativa (parcialmente exitosa) de escapar à previsível tônica de filmes de cativeiro – de certo modo, ele talvez até represente uma heresia em termos desse tropos narrativo sob a guarda de personagens sádicas. É para se lamentar, todavia, a falta de fé do roteiro quanto a levar o projeto às últimas consequências, por mais cinematograficamente heréticas que fossem.
Título original: Heretic
Direção: Scott Beck e Bryan Woods
Ano de lançamento: 2024
País: Estados Unidos
Duração: 111 minutos
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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!