A parte mais necessária de uma casa de quilombo é o quintal porque é onde as crianças aprendem a fazer tudo (Antônio Bispo)
Por Ana Caroline Acosta*
A natureza carrega dentro de si um forte conteúdo simbólico na gratuidade e nas possibilidades, com as quais se apresenta como fonte inesgotável de experiências, pelas quais os seres humanos cumprem sua história. No entanto, existe uma cultura da criança, um modo próprio e singular de apropriação do mundo, sendo a natureza o seu chão. Sobre esse chão a criança se inicia no domínio de sua língua universal: o brincar.
Para o ativista e líder indígena Krenak, devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70 % de água e um monte de outros materiais que nos compõe. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser.
Em sintonia à afirmação de Krenak, o quilombola Antônio Bispo pontua que humanismo é companheiro da palavra desenvolvimento, cuja ideia é tratar os seres humanos como seres que querem ser criadores e não criaturas da natureza, que querem superar a natureza.
Do lado oposto dos humanistas estão os diversais – os cosmológicos ou orgânicos. Se os humanos querem sempre transformar os orgânicos em sintéticos, os orgânicos querem apenas viver como orgânicos, se tornando cada vez mais orgânicos. Para os diversais, não se trata de desenvolver, mas de envolver. A humanidade é contra o envolvimento, é contra vivermos envolvidos com as árvores, com a terra, com as matas. Desenvolvimento é sinônimo de desconectar, tirar do cosmo, quebrar a originalidade. Se para Bispo há os diversas, cosmológicos e orgânicos, para Krenak existem os muito-humanos e os quase humanos.
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Escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como ‘natureza”, mas do que por alguma razão ainda se confunde com ela. Tem alguma coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada identificada por nós que tá sumindo, que está sendo exterminada da interface de humanos muito humanos. Os quase humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta. E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias, pobreza, fome, violência dirigida (Krenak)
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Enquanto a sociedade se faz com os iguais, a comunidade se faz com os diversos. Nós somos os diversais, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. Sermos capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência, definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. Ter diversidade, não isso de humanidade com o mesmo protocolo, por que isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos.
A partir dessas ideias sobre as concepções de natureza ou naturezas, Lea Tiriba, educadora e ambientalista das infâncias, afirma que, buscando inspirações nas tradições ancestrais, através de conexão com a natureza, com o cosmo, inaugurando um diálogo de novo tipo, inclui seres e entes não humano. Estes são caminhos que têm mostrado frutíferos no sentido de contribuirmos para a formação de professores e professoras que estejam conectados consigo mesmos e comprometidos com a qualidade de vida, com a felicidade de adultos e crianças no cotidiano, conclui Tiriba.
Para o Pereira nós, brasileiros, herdamos duas palavras para significar o fenômeno lúdico. Consideramos o brincar e o jogar de forma distinta, enquanto a maioria das outras línguas possui uma só palavra para significar essas duas qualidades. Essa distinção é importante de ser revelada porque traduz uma ampliação da nossa compreensão das singularidades do universo das brincadeiras e dos jogos. Ainda para a autora, nós brasileiros, temos a palavra brincar associada aos folguedos e as festas populares, que ampliam o universo de entendimento do verbo brincar.
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Fui criado brincando de fazer o que os mais velhos faziam. Eles passavam o dia no engenho produzindo rapadura, melaço, batida e beneficiando a cana-de-açúcar com tração animal. Nós, crianças, fazíamos a mesma coisa, de brincadeira. Brincávamos de farinhada e moagem, de fabricar engenho e produzir, só que os nossos bois não eram bois vivos, eram bois artesanais. Eram frutos que podíamos aproveitar, madeira do mandacaru que esculpíamos. Brincávamos de ser adultos, de fazer o que os adultos faziam. E assim aprendíamos a fazer tudo. Mas também brincávamos nos festejos feitos a partir da arte local, da arte do nosso povo. (A. Bispo)
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Outra obra que investiga a relação infância e natureza sobre o imaginário e o brincar, se chama Brinquedos de chão, do pesquisador nas áreas de cultura e produção simbólica, antropologia do imaginário e filosofias da imaginação, Gandhy Piorski. Este autor, literalmente, agachou-se com as crianças de 25 comunidades do Ceará e traz experiencias incríveis em sua obra.
Em minha pesquisa acompanho crianças em seus espaços educativos e analiso suas experiências em relação a natureza. Neste ensaio, busquei a interação de alguns autores, de áreas e linhas de pesquisa diferentes na tentativa de reflexão sobre essas as sociedades e naturezas. Abaixo, seguem algumas ilustrações sobre o brincar, os brinquedos das crianças na natureza.**
*Professora, mestre em dinâmicas regionais (Ufrgs) e pesquisadora na área das infâncias e natureza
**Resumo expandido do artigo “Infância e Natureza: experiências do brincar”