INGMAR BERGMAN E AS MÁSCARAS DE UM GÊNIO ATORMENTADO

Por Breno Xavier Matos*

Na noite do dia 12 de maio de 1997, no Festival de Cannes, 29 dos maiores cineastas vivos elegem um diretor ao qual receberá o prêmio mais importante da cerimônia. Não a prestigiada Palma de Ouro que é entregue a cada ano, mas A Palma das Palmas. Prêmio este que só foi entregue uma única vez até os dias de hoje. Aplaudido durante três minutos por mais de 2.500 pessoas, este diretor se chama Ingmar Bergman.

Além da quantidade absurda de obras produzidas ao longo de sua carreira –, foram mais de 70 títulos incluindo curtas-metragens, documentários e filmes para tv − ele foi um dos nomes mais influentes para o cinema. Entregou uma quantidade inimaginável de obras-primas que moldaram o cinema sueco e mundial. Eleito pela revista britânica Sight and Sound como o 8º melhor diretor de todos os tempos, Bergman realizou filmes como Mônica e o Desejo (1953), O Sétimo Selo (1957), Morangos Silvestres (1957), A Fonte da Donzela (1960), Através de um Espelho (1961), Luz de Inverno (1963), O Silêncio (1963), Persona (1966), Gritos e Sussurros (1972), Cenas de um Casamento (1973), Sonata de Outono (1978), Fanny e Alexander (1982), apenas para mencionar alguns.

Mas citar meramente a importância de suas obras para a sétima arte, ou mesmo a de seu nome para o teatro – porque sim, Bergman também é considerado o maior diretor de peças teatrais da história da Suécia − além do quesito informático, seria simplesmente chover no molhado. O que o motivou a fazer todas essas obras com tanto peso dramático e existencial? Qual a relação das obras com o próprio diretor e o que ele queria dizer através delas? São questões como essas que motivará o texto a seguir, em busca de conhecer os demônios internos de Ingmar Bergman.

UMA INFÂNCIA, SEGUNDO BERGMAN

A ideia não é exatamente seguir à risca uma linha cronológica de sua vida, mas a infância e adolescência do cineasta será de grande relevância para entendermos o que viria a seguir em sua carreira artística.

Ernst Ingmar Bergman nasceu no condado de Uppsala, costa leste da Suécia, no dia 14 de julho de 1918. Filho de Karin, uma enfermeira, e Erik, um pastor luterano, Bergman vivera grande parte de sua juventude em Estocolmo, ao lado de seus dois irmãos, Dag e Margareta. Desde o seu nascimento as complicações e desafetos familiares pareciam lhe acompanhar. Uma carta escrita por sua mãe neste dia – divulgada em sua autobiografia Lanterna Mágica de 1986, – já relatava a total frieza por parte de seus pais com seu nascimento, e de suas fraquezas com relação a saúde, dado que o garoto passaria desde aquela manhã até o findar de seus dias com dores de barriga constantes e dificuldade com a alimentação. A primeira lembrança do sueco é a de estar deitado numa cama doente, tossindo e com febre, sendo medicado torcendo para aquele momento passar.

Bergman sempre foi um mestre em contar histórias. Sejam elas verdades ou mentiras. Aprendeu muito cedo esta arte, acima de todas as outras, pois percebeu que a única forma de livrar-se de algumas boas surras de seu severo pai, era mostrar interesse pela bíblia, o paraíso, perdão e Jesus. Por meio destas, conseguia sair para brincar, ganhava presentes, chocolates, e ia com frequência ao cinema com sua avó – da qual tinha grande apreço. Os filmes assistidos faziam Bergman florescer de felicidade. Ansiava pelos momentos em que podia sair para ver uma peça num teatro, ou um filme no cinema. Ao chegar da escola, criava bonecos e cenários para reprisar o que havia assistido com muito entusiasmo. Com o tempo passou a criar as próprias histórias e a escrevê-las. Mais tarde, ao ser questionado por sua avó sobre o que queria ser no futuro, respondeu de bate-pronto: “quero ser diretor”.

Envolvido por tramas das mais diversas possíveis desde jovem, e dominado a arte da mentira, criava com frequência ilusões e falsas-verdades com as quais misturava com a realidade. Relatou por vezes em sua velhice que isso o prejudicou fortemente, ao ponto de passar o resto da vida questionando e misturando ilusões e fatos. Afirmou por vezes ter experiências sobrenaturais na infância – algumas delas retratadas em sua obra mais nostálgica Fanny e Alexander. Mas a maior de suas ilusões, segundo conta, é a perda da fé. Em plenos oito anos de idade afirmou não acreditar mais em um Deus. Tendo em casa um pastor tão rígido como pai, encontrava por vezes em confusões com seu irmão Dag – com o qual possuiu um laço de ódio que levaria anos para perder, – e ambos eram severamente punidos com açoites e castigos cruéis. Contemplando o amor de Deus através das pregações de seu pai, jurou ódio a este ser divino que tinha como servos homens como este. O mesmo descreve seu sentimento em sua autobiografia: “Deus não existe, ninguém pode provocar sua existência. E se existe, então está provado que é um deus miserável, mesquinho e partidário!”. Mesmo tão convicto do que dizia, Bergman nunca deixou de questionar seu ateísmo. Nunca abandonou a possibilidade da existência de um deus, e por muitas vezes isso o atormentou em sua fase adulta gerando diversos filmes com temas que o levavam a essas reflexões. Daí surgiram obras como: O Sétimo Selo, A Fonte da Donzela, e Luz de Inverno.

Tudo iria começar na vida do futuro cineasta poucas semanas antes do natal por volta de 1926, quando sua tia Anna, que sempre lhe traziam presentes ao visitar a família Bergman, trouxe naquele dia um cinematógrafo. Quando o aparelho foi desembrulhado, o jovem Ernst decidiu que aquilo era a única coisa que queria em sua vida. Nada mais. Mas para o seu azar, o presente fora dado ao seu irmão Dag. Depois de algumas birras e choros, Bergman no meio de uma noite, encontraria o seu irmão para barganhar o desejado. Oferecendo todo o seu exército de soldados de brinquedos, conseguiu trocar pelo cinematógrafo. A descrição por parte do sueco de como foi a sua sensação ao usar o aparelho nota-se o quão emotivo e importante foi aquele momento em sua vida. No meio da madrugada, ainda com o cheiro de metal aquecido, girando a manivela, o garoto presenciou um novo universo ganhando vida na parede de seu quarto.

Desde aquela noite mágica, o garoto passou a escrever diversas peças para serem interpretadas por membros de sua família em datas comemorativas em que seus parentes se reuniam. Nos anos seguintes faria de tudo para se envolver com qualquer evento relacionado com a arte da interpretação, até finalmente conseguir um trabalho num teatro local, onde apresentou diversas peças infantis nos parques da cidade. Aos poucos seu talento foi notado até encontrar-se no prestigiado Teatro Nacional de Estocolmo, onde passou a dirigir peças mais relevantes, escolhendo com quais textos trabalharia, horários e elenco. Dado o seu sucesso nos palcos, não levou muito tempo até receber uma oportunidade para dirigir um filme, do qual não pensou duas vezes em aceitar. Descreveu sua empolgação neste momento da seguinte forma: “Telefonei logo a minha mulher, que tinha ficado em Helsingborg, e disse-lhe, excitado, que a partir dali Sjöberg, Molander e Dreyer teriam que se acautelar porque agora havia um Ingmar Bergman”.

AS FACES DA INSEGURANÇA, E O PONTO DE VIRADA

Por ter participado da produção de algumas obras, antes de dirigir a sua própria em 1945, Bergman com 27 anos de idade, achava saber de tudo para se tornar um grande cineasta. Mas logo depois do início das primeiras tomadas de gravação, notou o tamanho da sua inexperiência na área. Sempre muito orgulhoso, não podia se dar por vencido. Achando que tudo estava um desastre, e que ninguém conseguia fazer o que ele pedia, gritava o tempo inteiro, discutia e berrava aos quatro ventos. Praticamente todos tiveram desgosto de trabalhar com essa nova promessa do cinema. Mesmo tendo conseguido finalizar seu projeto, aos trancos e barrancos, criou uma péssima imagem para os estúdios e para os profissionais envolvidos. Provavelmente não teria recebido uma nova oportunidade na direção naquela época se não fosse por Victor Sjöström, – grande nome sueco do cinema mudo, diretor de A Carruagem Fantasma e Vento e Areia – que tinha apreço por Bergman. Sjöström admitiu não ter gostado nada de seu primeiro filme Crise, mas que via grande potencial nele. Deu-lhe diversas dicas valiosas que Ingmar afirma ter levado para toda a sua carreira no cinema dali por diante.

Ainda na década de 40, Bergman faria diversos outros trabalhos para o cinema com roteiros de terceiros permitidos pela produtora. Eram projetos completamente controlados com pouco espaço para uma revelação autoral, o que o enfurecia ainda mais. A cada filme realizado, novas reclamações sobre o temperamento do diretor eram feitas. Nenhuma de suas obras desta primeira fase tiveram grande reconhecimento com o público, muito menos com a crítica. E aos poucos, o cineasta foi entendendo que precisaria espremer leite de pedra com aquilo que tinha a disposição e mostrar algo diferente para ser reconhecido e ganhar mais liberdade para trabalhar. E foi então, apenas na década de 50 que tudo mudou em sua carreira. Em 1951, Bergman dirigiria novamente um melodrama, mais desta vez havia recebido a liberdade de escrever o próprio roteiro, o que gerou o primeiro ponto de virada. Ainda sem um estilo definido na direção, buscou em todos os lugares boas referências para construir seu novo projeto, formas de se trabalhar os movimentos de câmera, profundidade, plano e contraplano, enquadramentos, e passou a imaginar como, além da história base, poderia dizer algo através das imagens sugeridas. E foi assim que concebeu Juventude, que recebeu diversos elogios, o tornando mais conhecido nacionalmente. Anos depois o filme estrearia e seria premiado no festival de Cannes, onde será tratado como o mais novo nome sueco badalado do cinema. Mas ainda não havíamos chegado em seu ápice da primeira fase de sua filmografia.

Em 1953, Bergman ousará ainda mais em seu novo filme Mônica e o Desejo, este que será um grande sucesso por ser banido de alguns países pelas cenas de nudez da grande atriz Harriet Andersson – com qual iniciaria uma longa parceria no cinema –, que pra época era de grande polêmica. Uma obra carregada de simbolismos eróticos e inovadores que darão ainda mais credibilidade para o sueco em seus trabalhos futuros. Mas foi apenas em 1955, com Sorrisos de uma Noite de Amor, que se tornou um sucesso absoluto de bilheterias e críticas na Suécia, que Bergman receberia carta branca. De agora em diante poderia fazer o que quisesse com seus filmes. E só então, em 1957, que chegaríamos em seu auge. Um ano que mudará sua vida de diversas formas.

A ASCENÇÃO MUNDIAL, E A QUEDA EMOCIONAL

Próximo de completar seus 40 anos de idade, Ernst precisou admitir que era um homem destruído emocionalmente. Por mais que ele dissesse o quão nostálgico se sentia ao relembrar sua infância, as marcas deixadas pelo desprezo, as mentiras, as doutrinas da religião, e as péssimas relações com sua família lhe agrediam cada vez mais de forma gradativa ao longo dos anos. É verdade que sua vida amorosa é uma bagunça do começo ao fim, e é sempre difícil dizer quando e como tais relações começaram e findaram. Mas a sua castração sexual devido aos ensinamentos sobre pecado em sua juventude, o fizeram alguém preso dentro da própria realidade construída apenas em sua mente, onde sentia-se bem sozinho, sem amigos ou companheiras, onde tudo que envolvia o carnal e o desejo era desconfortável e errado, e devido a isso, não sabia como se portar ao lado de alguém que pudesse gerar seu interesse. Seu primeiro contato com o sexo na adolescência veio por parte de uma tia distante que tinha, e que lhe visitava vez ou outra. Segundo relata Bergman, ela o molestou quando ainda passara um tempo morando com sua avó. E tudo isso fez com que em sua fase adulta, passasse a se relacionar com diversas mulheres ao mesmo tempo, mesmo estando casado, e com filhos. Quase como uma forma de se rebelar contra aquilo que lhe foi privado. Não sabia como controlar-se a um desejo reprimido por anos, e isto lhe rendeu uma péssima imagem com o público. E uma crescente e imparável depressão começou a se manifestar.

1957 chegara, e agora Bergman precisava lançar seu mais novo filme. Primeira semana de fevereiro quando chega aos cinemas O Sétimo Selo, a sua obra mais introspectiva e existencialista até então, onde o diretor coloca pra fora tudo o que estava sentindo naquele período de sua vida. Na superfície O Sétimo Selo conta a história de um cavaleiro que ao regressar para sua terra só encontra peste e sofrimento. Ao se encontrar com a morte, a desafia para uma partida de xadrez para prolongar seu tempo de vida na terra. Pegando conceitos de Dom Quixote, Bergman utilizará uma pintura que vislumbrou numa igreja em que um cavaleiro jogava xadrez com a morte em forma de esqueleto, e despejará toda sua angústia, todos os seus anseios, e frustrações, numa brilhante atuação de Max von Sydow. Mesmo com o estrondoso sucesso mundial da obra, e os prêmios recebidos, Bergman ia de mal a pior emocionalmente. Chegou a dizer por várias vezes que este filme foi, acima de tudo, uma grande terapia para sua condição. Mas ainda não havia sido o suficiente para lhe livrar das paranoias e insônia. Precisava estar constantemente trabalhando para ocupar sua mente ao máximo. Se tornou um completo viciado em seu ofício. Neste período não conseguia parar. Ainda em 1957 realizaria mais quatro peças para o teatro, e duas obras para o cinema; a primeira destas é Morangos Silvestres – que nos conta a história de Isak, um idoso professor renomado que reflete sua vida e a morte enquanto viaja para receber um prêmio honorário por seu trabalho acadêmico, – chegou próximo ao natal daquele mesmo ano aos cinemas. Outro grande sucesso, muito elogiado e premiado. Ambos os filmes, O Sétimo Selo e Morangos Silvestres se tornaram marcos para o cinema sueco e mundial, sendo tratados instantaneamente como novas obras-primas.

A DEPRESSÃO, E O MEDO DA REALIDADE

Os anos 60 são provavelmente o verdadeiro auge da carreira de Ingmar Bergman. Além das duas obras citadas anteriormente, aqui reside a maioria de seus filmes mais importantes para o cinema.

Ainda em 1960, o diretor irá lançar A Fonte da Donzela, onde irá explorar a maldade humana e, o ódio e o medo que começara a sentir da realidade. Questões estas, que por mais brilhantemente bem trabalhadas aqui, ainda retrata uma superfície quando as levamos para a sua Trilogia do Silêncio, composta pelos filmes Através de um Espelho, Luz de Inverno, e O Silêncio. O próprio diretor diz em uma entrevista para um documentário que nunca cogitou tais obras serem uma trilogia, mas que acabou sendo vista desta forma por muitos, até hoje, por estarem na moda fazer trilogias naquele período. Ainda assim, é possível notar que tais temas e questionamentos mencionados são comumente abordados em todas as três obras. Mesmo que possamos dizer isto de quase toda sua filmografia da década de 60, é inegável que estes três filmes específicos conversem entre si. Cada um com sua face, cada um à sua maneira. E a qualidade técnica de Bergman nunca esteve tão em alta quanto agora. Sua confiança e talento afloravam a cada novo plano trabalhado em tela. Cada fotografia e decupagem sendo extraídos ao máximo a cada filme.

 A relação do sueco com sua mãe, Karin, é provavelmente a que mais lhe perturbou ao longo dos anos. E isso fica muito evidente em seus filmes quando nos aprofundamos em sua história. Seu coração consumia-se de amor por ela, mesmo com uma relação tão complicada, Bergman nunca entendeu de onde vinha tanto amor, e nem o porquê ela era tão misteriosamente distante de tudo e de todos. Ao descrever sobre ela, ele diz: “Debruço-me sobre fotografias de minha infância e estudo a fisionomia de minha mãe com a ajuda de uma lente. Tento penetrar em sentimentos já diluídos.” E isso irá impactar fortemente a sua filmografia a partir dos anos 60. Já em Através de um Espelho acompanhamos o sofrimento de uma mulher chamada Karin – mesmo nome de sua mãe, – que está com uma doença mental grave e incurável. A mãe de Bergman sofria de transtorno dissociativo de personalidade, e devido a isso, não evitava sentir um tremendo afeto por seu filho num momento, e num outro desprezá-lo amargamente. E isso mais uma vez volta a lhe atormentar, e a lhe enfurecer, suficientemente para realizar em 1966 a obra, que é provavelmente, mais importante de sua vida; Persona.

Bergman relata numa entrevista para um documentário sueco, que Persona é provavelmente o seu ápice como diretor, e que não conseguiria fazer nada que fosse além deste. Em estado de depressão profunda devido ao falecimento de sua mãe em 1965, decide se isolar do mundo e de todos, e é então que encontra uma pequena ilha chamada Farö no mar báltico situada a alguns quilômetros ao norte da ilha Gotland. Estando lá, o diretor se encontrou de frente com seus demônios internos. Depois de um tempo, ao se reunir com uma de suas principais atrizes Bibi Andersson –, com qual finalizava um caso que possuía há anos, – e com Liv Ullmann, que era o seu novo caso amoroso – outra grande atriz sueca com qual terá uma longa parceria a partir dali. E ao vê-las naquela praia conversando, notando uma certa semelhança entre ambas, que terá a ideia para construir Persona. Com um roteiro agora pronto, inteiramente pensado para as duas atrizes, o cineasta decidiu que gravariam ali mesmo, naquela ilha. No entanto, ele queria fazer algo diferente do que já tinha feito. Sentia que podia ir além. Ainda queria falar sobre sua mãe, sobre si mesmo, e a sua depressão, mas não queria que fosse tão claro como em Através de um Espelho. E foi então que resolveu abordar todos os temas que o assombrava da forma mais profunda, poética e abstrata que conseguiria. O seu maior desejo era conseguir colocar o público em sua pele, e sentir cada segundo daquela experiência, e em 1966, Persona já estava pronto. E mais uma vez, seu filme foi tratado como uma nova obra-prima instantânea. A linguagem utilizada pelo diretor foi inovadora e revolucionária. E é um filme debatido até os dias de hoje, com diversas interpretações e visões diferentes.

Bergman ainda chegaria a realizar outras obras com temáticas semelhantes nos anos 60, como por exemplo A Hora do Lobo de 1968, onde novamente a abstração é o fio condutor para a construção da obra, também Vergonha do mesmo ano, e ainda A Paixão de Anna de 1969. Abstração esta que irá se estender até Gritos e Sussurros de 1972, e Face a Face de 1976, onde a realidade novamente será colocada em xeque diante dos nossos olhos. Destes dois, sem dúvidas Gritos e Sussurros é a mais relevante, e o próprio cineasta a coloca lado a lado com Persona, como seus dois trabalhos que representam o seu ápice como diretor, e provavelmente seus dois favoritos de toda sua filmografia. Um filme que foi concebido a partir de uma visão que Bergman teve num dia qualquer, quando visualizou um quarto vermelho e algumas mulheres vestidas de branco cheias de ódio e rancor cobertas por falsas gentilezas.

FINAL DA CARREIRA, MORTE E LEGADO

Quando Bergman finalmente achara ter extraído o que lhe perturbava com relação a sua mãe, decidiu então a falar em seus filmes sobre outros temas que iam lhe surgindo, deixando a criatividade tomar conta. Um fato curioso sobre o sueco, é o de que sempre que o mesmo decidira realizar algum filme sobre algo que não fosse sobre si mesmo, sua mãe, ou sua infância, as obras eram um fracasso de público e de crítica. Como se a realidade quisesse provar a famosa frase dita para os autores: “escreva sobre o que você sabe”. Foi então que uma de suas melhores ideias surgiu de um evento triste de sua vida; a separação de seu casamento com Käbi Laretei. Ainda possuindo vários casos amorosos, se viu completamente apaixonado por uma delas quando estava em uma viagem fora do país. Decidiu voltar para Käbi apenas para contar sobre sua nova paixão, e o pedido de divórcio. Depois de muitas discussões entre ambos, Bergman se viu na obrigação de escrever sobre o que aconteceu, o que gerou Cenas de um Casamento de 1973, que a princípio foi pensado e filmado para a tv sueca aberta como minissérie, e só depois de seu sucesso absurdo que foi reeditado e lançado também nos cinemas. Este sucesso gerou uma quantidade enorme de divórcios no país naquele ano que deu início logo depois da exibição dos episódios. Porém, mais um pesadelo ainda estava a sua espera.

Em 1976, Bergman seria acusado formalmente de sonegação de impostos. Evento esse que lhe fez novamente de vilão nos jornais do país. Depois de algumas lutas judicias seria provado a sua inocência, mas o seu enfurecimento não havia acabado. Sentiu-se extremamente injustiçado e decidiu sair da sua terra natal. Refugiou-se na Alemanha durante quase uma década. Neste período, Bergman não deixou de realizar seus filmes. Agora fluente em alemão, passaria a dirigir suas peças de teatro em terras germânicas, e em 1977 lançaria seu primeiro filme alemão O Ovo da Serpente, e em 1980 também faria Da Vida das Marionetes. Mas, seu maior filme nesta nova fase, sem dúvidas é Sonata de Outono de 1978, onde conseguirá novamente trazer para o seu elenco a atriz Liv Ullmann, e agora também a grande atriz Ingrid Bergman – que apesar do mesmo sobrenome, não tinha nenhuma ligação com o diretor, nem parentesca, nem amorosa. Filme este em que novamente vai abordar uma relação materna destruída com o tempo, e que lhe rendeu outra vez grande sucesso com a crítica, duas indicações ao Oscar, e diversos outros prêmios.

Entrando na década de 80, encontramos Bergman já com mais de 60 anos. Notando o peso da idade sobre seu trabalho, se sentirá deprimido com a vida. Ao desabafar com seu grande amigo Erland Josephson – outro grande ator sueco com quem trabalhou por muito tempo, que conheceu ainda quando dirigia peças infantis na década de 30, e que o levou consigo para quase todas as suas fases cinematográficas, – e dizia que não entendia de onde vinha tanta tristeza e desprezo pelas coisas a sua volta. Determinado a encerrar sua carreira no cinema, resolveu olhar para sua infância uma última vez. Relembrar todos os momentos que lhe foram importantes, os bons e os ruins. Decidiu que faria ali a sua maior obra. Filmou suficientemente o bastante para conseguir lançar em versões para cinema e para tv como seriado, e dali surgiu, em 1982, Fanny e Alexander. E, novamente, é tratada como uma obra-prima instantânea. Recebeu seis indicações ao Oscar, vencendo desta vez quatro delas, e vários outros prêmios. Por várias vezes Bergman ainda afirmaria acabar sua carreira como diretor de filmes, coisa que não aconteceu até lançar em 2003 definitivamente seu último trabalho cinematográfico; Saraband.

Ainda na década de 90, pouco antes de receber A Palma das Palmas pelo Festival de Cannes, o diretor finalmente decidiu isolar-se do mundo e de todos, ao mudar-se para a ilha Farö. Estando lá, afirmou ter encontrado a paz que tanto buscou. Por mais que seus demônios nunca tenham lhe permitido viver sem paranoias e insônia, dizia que estar só naquela ilha, por mais solitário que pudesse parecer, era prazeroso e reconfortante. Viveu ali até seus 89 anos quando por fim faleceu.

Ingmar Bergman marcou a história do cinema e do teatro. Suas obras fixaram na mente de quem teve a oportunidade de as ver. Sempre com temas profundos, existencialistas e melancólicos, o diretor conseguia transmitir de forma intrínseca e poderosa o retrato do desespero humano; seja através das relações complexas entre as pessoas, a perda de uma fé divina, ou mesmo pela depressão profunda. Uma pena que tudo isso só tenha sido possível através de uma vida amarga e cheia de complicações. Seus principais trabalhos sempre figuram nas listas de melhores filmes de todos os tempos, e de forma justa, pois poucos cineastas na história conseguiram dizer tanto através da arte como Ingmar Bergman.

A seguir, bate papo com o crítico de cinema Breno Matos no para o Instagram do Temquever.

*Escritor, crítico de cinema, autor do livro Sobre Pássaros e Caracóis e grande admirador de arte, compartilha seus pensamentos e admiração pelo cinema por meio da página no instagram; Lanterna Mágica.

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