O cinema de guerrilha de Jorge Bodanzky e Orlando Senna
Por Leonardo Lima*
Nota: 7,0
Então sob o comando do general Ernesto Geisel (1974-1979), a ditadura militar começava a dar os primeiros sinais de desgaste. A utilização da repressão política como mecanismo capaz de ocultar ou minimizar as mazelas socioeconômicas já não alcançava a mesma eficiência de antes, a despeito da intensificação da propaganda ufanista. É nesse contexto de começo do fim do regime que um filme como Iracema – Uma Transa Amazônica, dirigido pela dupla Jorge Bodanzky e Orlando Senna, é produzido com o patrocínio da ZDF, emissora de TV alemã.
Lançado na Alemanha em fevereiro de 1975, Iracema obteve boa repercussão entre o público e a crítica de cinema. Censurado no Brasil, no entanto, viria a ser exibido no país apenas em 1980, no Festival de Brasília. Ao assistirmos ao longa-metragem, logo percebemos o porquê dessa proibição por parte dos verdes-oliva à frente do Estado. Afinal de contas, a narrativa híbrida da obra, uma ficção essencialmente documental em seu formato de registro das imagens, ia na contramão das pretensões propagandísticas do governo militar, expondo os graves problemas sociais que coexistiam aos projetos faraônicos que representavam a grandeza de nossa nação e (supostamente) a levariam ao pleno desenvolvimento econômico, a exemplo da rodovia Transamazônica.
Em sua dimensão ficcional, a narrativa de Iracema – Uma Transa Amazônica limita-se às personagens Tião Brasil Grande (Paulo Cesar Pereio), um alienado e malandro caminhoneiro cujas falas reproduzem o ufanismo tão em voga no período, e Iracema (Edna de Cássia), uma ingênua adolescente indígena que encontra na prostituição um caminho para sobreviver. A encenação despojada, aberta a improvisos, favorece a interação das duas personagens com aquelas pessoas que vão conhecendo nas veredas esquecidas da Amazônia. O fato de Edna de Cássia não ser uma atriz profissional constitui-se como um trunfo significativo, dada a espontaneidade e a liberdade dela em cena, ora denotando a dádiva de se estar vivo apesar de tudo, ora a melancolia da impossibilidade de superação daquele estado de coisas degradante. A complexidade dramatúrgica de Iracema é reveladora da própria vivência às margens da Transamazônica, cingida entre a esperança utópica e o desespero resignado.

Por outro lado, a dimensão documental emerge da maneira como Bodanzky e Senna exploram a realidade em torno de suas personagens ficcionais e, sobretudo, não ficcionais. Enquanto Iracema e Tião falam, a câmera costuma focar em direção oposta, direcionando o seu olhar para as ações de pessoas comuns, de nomes desconhecidos, vítimas do penurioso contexto em que estavam inseridas, geralmente atraídas pela propaganda do regime. A denúncia é feita pelos cineastas de maneira muito eficiente, sem que seja preciso dizer uma única palavra contrária à falácia do milagre brasileiro, simbolizado pela Transamazônica. As imagens falam por si, e de modo extremamente pujante.
Se a abordagem dos aspectos sociopolíticos se revela uma das mais proeminentes da história do cinema nacional, o mesmo êxito não se pode atribuir à forma um tanto fetichista como a protagonista é representada, não raro em detrimento da integridade da jovem Edna de Cássia tal como exibida em tela. Sabe-se que os tempos eram outros, nos quais não havia preocupações quanto à exposição da nudez explícita feminina no cinema, ainda que o corpo em questão fosse o de uma garota com apenas 15 anos. Em que pese o risco do anacronismo analítico na análise, é impossível não mencionar o incômodo com as imagens da não atriz expondo seus seios em frente à câmera, sem qualquer constrangimento – mais de uma vez isso ocorre, diga-se de passagem. Ainda que a decisão de assim mostrá-la possa ser entendida como um recurso de encenação cuja finalidade seja intensificar a miserabilidade da condição humana de Iracema, a decupagem frontal e crua reforça um lado mais sexualizado de Iracema que ultrapassa a ideia de bom senso (ou mesmo de ética) no registro cinematográfico.
De todo modo, Iracema chega ao seu quinquagésimo aniversário de lançamento carregando consigo o importante legado de ser um dos projetos mais ousados feitos durante os anos de chumbo. Legítimo representante do cinema de guerrilha, gravado em meio às adversidades naturais das locações no Norte do país, o filme escancara tudo o que quiseram esconder debaixo do tapete à época: pobreza extrema, desmatamento, queimadas, prostituição infantil, trabalho análogo à escravidão etc. Ressalvadas as devidas proporções da tragédia brasileira ao longo do último meio século, é inegável que, ainda hoje, ele continua sendo uma obra seminal para se pensar o Brasil do passado e o do presente, pois, por aqui, não há nada mais atual do que a infâmia de uma nação congelada no tempo de seus problemas que atravessam gerações.
Título original: Iracema – Uma Transa Amazônica
Direção: Jorge Bodansky e Orlando Senna
Ano de lançamento: 1975
País: Brasil, Alemanha Ocidental e França
Duração: 91 minutos
*Recifense, 40 anos, sociólogo. Antirracista, aliado do feminismo e das causas indígenas e queer, torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantém no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil no Letterboxd. Integrante do Podcast Cinema em Movimento e dos sites TemQueVer Cinema e Club do Filme.
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