JE VOUS SALUE, SARAJEVO

A obra-prima opuscular de Jean-Luc Godard

 Por Leonardo Lima*

Nota: 10,0

O francês Jean-Luc Godard merecidamente é considerado um dos maiores diretores da história do cinema. Para além da Nouvelle Vague, movimento cinematográfico que ajudou a promover e consolidar, Godard soube se reinventar continuamente ao longo do tempo, sempre fazendo do experimentalismo uma das características principais de sua filmografia.

Je Vous Salue, Sarajevo, de 1993, é um filme-ensaio que aborda, de maneira crítica e poética, uma imagem do fotojornalista Ron Haviv, capturada um ano antes na cidade bósnia de Bijeljina, durante a Guerra dos Bálcãs. Em dois minutos, Godard disseca essa fotografia com closers semanticamente reveladores, tendo ao fundo uma narração over do próprio Godard. O que se ouve, todavia, encontra-se dissociado da narrativa visual, ao menos numa camada interpretativa mais imediata. O texto narrado, de autoria multifacetada, versa sobre cultura e arte, ou, melhor dizendo, cultura (regra) versus arte (exceção).

Em sua argumentação, o diretor narrador recorre a exemplos retirados das mais diversas esferas de produção cultural para fundamentar seu pensamento, cujo cerne se volta para refletir sobre os obstáculos enfrentados por aqueles que ousam desafiar aquilo socialmente estabelecido, impondo sua prática artística heterodoxa para testar limites e promover rupturas que ampliem o escopo daquilo que é acolhido e cultivado como relevante do ponto de vista da cultura de uma determinada sociedade.

Em última instância, talvez seja até possível pensar que Godard está a refletir acerca de sua prática como diretor de cinema, em que cada vez mais se dispunha a explorar a extensa multiplicidade de formatos possíveis de se fazer a arte cinematográfica, reivindicando legitimidade artística para si próprio ao realizar atos que questionam o próprio conceito do que é cinema. Nesse sentido, Je Vous Salue, Sarajevo não se mostra como um mero filme-ensaio, mas, antes, parece querer para si o status de manifesto em prol de um experimentalismo que eleve o cinema a novos patamares, entrelaçando-o, de modo orgânico, a outras artes surgidas no bojo da modernidade, a exemplo da fotografia.

Ao mesmo tempo que assume esse lado explicitamente mais político, no sentido de redefinir os contornos do fazer cinematográfico, o curta de Godard também busca estabelecer uma situação propícia que permita ao público pensar acerca da condição humana, mais especificamente sobre aquilo que somos capazes de fazer a outros indivíduos, semelhantes que são a nós enquanto seres humanos, inclusive da mesma pátria. Num primeiro momento, a imagem daqueles soldados sérvios submetendo a todo tipo de humilhação seus conterrâneos bósnios – com direito a um chute gratuitamente dado contra uma mulher rendida ao chão – em nada parece se ligar ao texto narrado por Godard ao longo do curta-metragem; contudo, visto sob uma ótica semiótica, aquela imagem representa justamente essa problemática de escala universal quanto à aceitação ou ao menosprezo daquele diferente de nós, quaisquer que sejam os marcadores sociais que possam ser evocados: raça/etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, nacionalidade etc.

Diante de que foi falado sobre Je Vous Salue, Sarajevo, uma obra minimalista, de tom opuscular, que comporta em si uma densidade ímpar quanto ao seu conteúdo, não parece exagero afirmar que esse filme-ensaio de apenas dois minutos trata-se de um dos melhores trabalhos que compõem a filmografia de Jean Luc-Godard. Quiçá tem-se aqui a sua obra-prima por excelência!

 Título original: Je Vous Salue, Sarajevo

Direção: Jean-Luc Godard

Ano de lançamento: 1993

País: França

Duração: 2 minutos

Disponibilidade: YouTube

*Recifense, 40 anos, sociólogo. Antirracista, aliado do feminismo e das causas indígenas e queer, torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantém no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil no Letterboxd. Integrante do Podcast Cinema em Movimento e dos sites TemQueVer Cinema e Club do Filme.

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