LEVADOS PELA MARÉ

Corações desconexos na China contemporânea

NOTA: 8,0

Por Leonardo Lima*– direto do Janela Internacional de Cinema de Recife

República Popular da China, segundo país mais populoso e segundo maior PIB do planeta. Quem olha para a nação de hoje e a compara com aquela do passado, dificilmente haverá de negar o quão profundas foram as transformações que possibilitaram à China virar uma potência mundial. Sequer é necessário voltar muito no tempo, confrontando-se historicamente os dias atuais com os anos 1940, quando Mao Tsé-Tung liderou a Revolução Chinesa, implantando o regime socialista.

Basta que se faça movimento similar ao proposto pelo cineasta Jia Zhangke em seu mais recente projeto, Levados pela Maré – sugestivo título recebido no Brasil –, obra que se aproveita, com raro senso de oportunidade, do pano de fundo real das grandiosas mudanças promovidas pelo Estado chinês, nos últimos vinte anos, para contar uma fictícia história de amor que atravessa épocas e lugares, porém marcada pela entropia existencial de suas personagens, Qiaoqiao (Zhao Tao) e Bin (Lin Zhubin).

A trajetória desses dois indivíduos, igual a de tantos outros que vivem no embalo de encontros e desencontros, ganha contornos únicos graças à habilidade de Zhangke em articular, narrativamente, aspectos idiossincráticos de suas vidas frente àqueles elementos próprios ao vertiginoso processo de metamorfose socioeconômica vivenciada pela China, que vai deixando de lado suas características mais comunitárias e altruístas, por assim dizer, para se impor como uma sociedade cada vez mais organizada sob os moldes da impessoalidade urbana mediada pelo socialismo de mercado. Não à toa, episódios como a conquista do direito de sediar os Jogos Olímpicos de 2008, bem como a construção da hidrelétrica de Três Gargantas, simbolizam em tela a grandeza de seu impacto na vida das pessoas, levadas pela maré implacável das mudanças.

Para obter esse efeito, criador de uma imagem estroboscópica da história contemporânea chinesa, Jia Zhangke recorreu à sua filmografia, extraindo da mesma várias cenas que, por intermédio da montagem, adquirem novos significados narrativos. Esse reaproveitamento impressionista de material acaba sendo bastante eficiente, porquanto garante uma organicidade naturalmente legítima para os acontecimentos do filme, contados através de uma abordagem que mescla o ficcional e o não ficcional; ademais, em termos estéticos, o dispositivo da câmera propicia, aqui, acompanhar o desenvolvimento das tecnologias de captação audiovisual, desde as câmeras analógicas de baixa resolução até as atuais câmeras digitais de imagem cristalina e chapada.

O mais curioso de tudo, talvez, seja o fato de Levados pela Maré adotar um tom agridoce acerca do processo que elevou a China a um novo patamar no concerto das nações. Ainda que se perceba um certo saudosismo quanto a um passado o qual Zhangke sabe que não há como ser retomado, também existe um fascínio frente às possibilidades desprovidas de limites do presente, tal como implícito na cena em que Qiaoquiao dialoga com um robô humanoide. É bem possível que essa postura do diretor seja um reflexo da sabedoria milenar do povo chinês, com um pé firmado nas tradições e outro que se movimenta mirando o futuro. Negar esse equilíbrio de perspectiva seria agir quixotescamente na luta contra a correnteza, dispendendo esforços desnecessários que nos impediriam de seguir adiante, a despeito de qualquer coisa. Qiaoqiao compreendeu bem esse princípio filosófico, assim como a China. O céu seria o limite, como aponta a estátua do cosmonauta em meio à praça central de Datong, onde tudo se inicia e termina?

Título original: Caught by the Tides

Direção: Jia Zhangke

Ano de lançamento: 2024

País: China

Duração: 111 minutos

Quer receber conteúdo do TemQueVer no Whatsapp? (Clique aqui)

Quer escrever para o TemQueVer? Entre em contato conosco através do chat de nossas redes sociais (Instagram e Facebook) ou pelo email temquevercinema@gmail.com

*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

Comente