LEVANTE

Por Leonardo Lima*

Representante inconteste do Novíssimo Cinema Brasileiro, movimento difuso e diversificado que tem aberto flancos de relevo na cena cinematográfica do país no século XXI, Levante é daqueles filmes que versam sobre o mundo contemporâneo com agilidade e astúcia, ao mesmo tempo em que fazem isso sem abrir mão de uma força motriz singular ao arregimentar as possibilidades de uso da linguagem da sétima arte em prol da contação de uma história.

Para isso, Lillah Halla, cineasta que dirige o longa, não faz qualquer joguinho caprichoso de contenção temática, estética ou narrativa, proporcionando ao público, logo nos minutos iniciais, o confronto com uma realidade muito mais plural e diacrônica do que aquela à qual ele/ela, cidadã(o) médio e comum de nossa sociedade, tem acesso no seu entorno imediato, no dia a dia. Uma equipe de vôlei formada por mulheres das mais distintas matizes (no que concerne a gênero, à sexualidade, à raça/cor e à corporalidade), oriundo do Capão Redondo, periferia paulistana, cujos feitos ecoam dentro e fora da quadra ao aliar sucesso esportivo e inclusão social.

O foco narrativo aqui é dado à Sofia (Ayomi Domenica), adolescente negra, 17 anos, que brilha como atleta e agora tem a oportunidade de galgar voos ainda maiores fora do Brasil, mas que, desafiada pelo infortúnio da roleta-russa do “destino”, vê a sua vida de cabeça para baixo ao descobrir que está grávida. A indesejabilidade de dar à luz a essa criança move a protagonista em direção a uma espiral de perturbação existencial que a leva, inadvertidamente, até uma instituição que, mais à frente, se revelaria como integrante das hostes infernais de natureza sartreana – afinal, como diria o filósofo francês, o inferno são os outros.

Dito isso, a importância de Levante reside, de maneira óbvia, em primeira instância, no lastro sob o qual o roteiro estabelece seus fundamentos narrativos ao apontar para o grave problema de saúde pública vivido por milhares de mulheres a cada ano, grávidas desejosas de interromper a gestação, por motivos diversos, mas que se deparam com uma legislação que criminaliza qualquer ato voluntário e autoconsciente de aborto, salvo em casos de gravidez decorrente de estupro, diagnóstico do feto como anencéfalo ou quando há risco de vida à gestante. Diante desse controle opressor imposto aos seus corpos, muitas são as mulheres que buscam procedimentos clandestinos com vistas a não dar seguimento à gravidez, alternativas essas que, em sua maioria esmagadora, representam um real perigo até mesmo às suas vidas – em especial para aquelas mais vulneráveis em termos de classe, as quais não contam com recursos econômicos e uma rede de apoio discreta à sua disposição que lhes viabilize contornar a proibição legal do aborto em nosso país.

É de encher os olhos como a abordagem feita pela direção integra organicamente a discussão acerca dessa pauta à narrativa – queer sem ressalvas, vale informar -, sem impor a mesma por intermédio de um discurso militante estreito e panfletário, cilada esta na qual filmes com temáticas sociais não raramente costumam cair, ainda que inconscientemente. O arco dramático de Sofia, sustentado através de sua relação com o pai João (Rômulo Braga), a ficante / namorada, as amigas de time e a treinadora (Grace Passô), é potencializado graças ao tom espontâneo e realista da encenação por parte desse núcleo próximo à protagonista. Contribui para isso, ainda, a câmera que filma Sofia com planos em close, tornando-a íntima de nós e fazendo com que sintamos a sua angústia e dor frente àquela situação que não desejava estar vivendo. Destaque-se, também, o ótimo trabalho de som realizado, marcado por pulsos vibrantes de dark techno music que deixam as cenas ainda mais carregadas e sombrias dramaturgicamente.

A despeito de tais aspectos que tornam positiva a experiência com o filme, há de se tecer considerações acerca do tom semicaricatural dos religiosos extremistas que tentam se colocar como obstáculo às pretensões de Sofia em fazer o procedimento abortivo. Obviamente, temos aqui mais um caso de obra do cinema nacional contemporâneo que toma como calcanhar de Aquiles, para si, uma representação ingênua e um tanto deturpada dos segmentos sociais mais conservadores da sociedade brasileira.

É fato que, indivíduos reais cuja visão de mundo é similar àquela dos antagonistas vistos em Levante, muitas vezes se mostram dispostos a tudo quando se trata de defender seus ideais e crenças, mesmo que se isso implique num autoritarismo impeditivo do exercício da vontade alheia; todavia, também é verdade que, tal como exposto em tantos exemplos mais recentes de nosso cinema (vide Divino Amor e Medusa), parece haver um desconhecimento profundo com relação aos pilares da práxis cotidiana de quem pauta sua vivência a partir de uma moralidade cristã assumidamente dogmática e fundamentalista. Ao se fazer isso, acaba-se comprometendo o alcance da denúncia levada às telas, uma vez que esse tipo de construção caricatural gratuita aproxima tais personagens daquilo que poderíamos chamar de representação vilanesca circunscrita a determinadas expectativas estereotípicas por parte do público a quem a obra se destina. Portanto, a mensagem apresentada torna-se vendável tão somente aos já “convertidos”, adeptos de um ideário progressista, ao invés de adquirir contornos críticos capazes de levar a uma reflexão genuína, passível de fomentar, inclusive, uma mudança de perspectiva no sentido do respeito à alteridade social.

De todo modo, apesar das limitações apontadas acima, Levante se revela como uma grata surpresa no atual contexto cinematográfico brasileiro. Consciente quanto ao ponto nodal de sua narrativa, é feliz ao evidenciar quão exitosa pode ser a iniciativa pautada pela organização coletiva, algo ainda mais verdadeiro quando se tem em conta a prática da sororidade, que envolve empatia, confiança, cooperação e acolhimento mútuo entre pessoas detentoras de útero, órgão este que, historicamente, carrega consigo todo o peso simbólico da operação tentacular levada a efeito por homens visando dominar as mulheres e seus corpos.

*Recifense, 38 anos, sociólogo, aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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