Uma sombria desventura histórica que dialoga com o nosso presente
Por Leonardo Lima*
Nota: 6,0
Viagens no tempo, no âmbito de produções cinematográficas do gênero ficção científica, talvez se constitua como um dos motes de maior poder de sedução junto ao público nas últimas décadas. Possivelmente inaugurado em 1921 com A Connecticut Yankee in King Arthur’s Court, dirigido por Emmett J. Flynn, longa que adapta um romance homônimo escrito por Mark Twain, esse tropo narrativo é representado por obras como a trilogia De Volta para o Futuro, O Exterminador do Futuro, Bill e Ted: Uma Aventura Fantástica, Os 12 Macacos, Efeito Borboleta, X-Men: Dias de um Futuro Esquecido, entre tantas e tantas outras – nem mesmo o cinema brasileiro passou incólume a essa influência, haja vista o subestimado O Homem do Futuro, estrelado por Wagner Moura.
Por mais variados que sejam estética, técnica ou narrativamente, a maioria esmagadora dos filmes de viagem no tempo possuem como premissa básica a ideia de regressar ao passado com o objetivo de modificar algum aspecto do presente relevante para suas personagens. Assim sendo, viajar ao futuro acaba sendo uma possibilidade que, de modo geral, é explorada em escala reduzida no cinema. Máquina do Tempo (LOLA, no título original), com direção do estreante em longas Andrew Legge, é um desses casos que utiliza o futuro com vistas a alterar o curso do presente narrativo. E o mais interessante é que faz isso dentro de uma abordagem histórica, uma vez que se passa em um dos períodos mais decisivos da Segunda Guerra Mundial, quando os confrontos em território insular entre a Alemanha nazista e a Grã-Bretanha encontravam-se no auge.
As irmãs protagonistas, Thomasina (Emma Appleton) e Martha (Stefanie Martini) constroem LOLA, uma máquina que intercepta transmissões radiofônicas e televisivas do futuro. Inicialmente, a fissura de ambas com a capacidade preditiva do artefato advém das revelações sobre a descolada cena cultural dos tempos vindouros, particularmente a contracultura dos anos 1970, exemplificada através das canções de David Bowie. Porém, à medida que a blitzkrieg alemã ameaçava fazer sucumbir a resistência inglesa, elas se dão conta que LOLA poderia ser uma peça fundamental para a vitória das tropas lideradas por Churchill. E isso acontece, de fato. Ao menos num primeiro momento.
Como até mesmo em sociedade toda ação gera uma reação, a vantagem bélica decorrente do uso de LOLA logo se transforma em soberba e estado de cegueira, impedindo, assim, que os britânicos se deem conta da reorientação de estratégias do inimigo – por sinal, aqui o roteiro parece tecer uma crítica ao fato de as forças políticas ditas democráticas costumarem subestimar o neofascismo e o conservadorismo radical, algo que, em parte, levou à emergência e ao rápido avanço global da extrema-direita nos últimos dez anos. Em consequência, o futuro de Thomasina e Martha torna-se imprevisível, com reviravoltas sucedendo reviravoltas, mudando, assim, não apenas a factualidade dos acontecimentos posteriores àquele presente em (re)construção degenerativa, mas, também, a própria maneira como as duas vivem e sentem o mundo ao seu redor, a ponto de separá-las.
O caráter distópico em relação a um momento histórico marcante do século XX inegavelmente é um diferencial de Máquina do Tempo. Todavia, a maneira como a mise-en-scène dessa ficção científica se sustenta torna tudo ainda mais peculiar, particularmente no que diz respeito à sua estruturação narrativa como pseudo-documentário associado ao found footage. O que vemos são gravações encontradas ao acaso, nos dias atuais, de fatos supostamente verídicos que acabaram sendo esquecidos no tempo.
Por um lado, esse material, todo em preto e branco, constitui-se como um trunfo, sobretudo em termos estéticos e técnicos, uma vez que o diretor Andrew Legge recorreu a autênticas câmeras e lentes dos anos 1930 – a exemplo das clássicas Bolex e Arriflex de 16mm e Newman Sinclair de 35mm –, bem como a uma tradicional técnica de revelação de imagens empregada no cinema soviético da época. Contudo, a relação do mesmo com o desenvolvimento narrativo em parte é comprometida por uma blocagem confusa, a qual por vezes sabota a própria noção de found footage.
Além disso, outro problema de Máquina do Tempo é o modo inorgânico como se dá a relação entre as irmãs a partir da segunda metade do longa, como se tudo o que fora vivido por elas até aquele momento, de descobertas de um futuro glorioso e culturalmente potente, fosse um mero detalhe, capaz de ser deixado de lado por conta de uma história de amor incompreendida. Com isso, tanto as decisões que ambas passam a tomar quanto as consequências das mesmas terminam nunca sendo justificadas devidamente. Assim, apesar do evidente drama em curso, esvazia-se o peso da narrativa, e, por conseguinte, o interesse do público frente ao filme.
Apesar de suas limitações, Máquina do Tempo é um bom exemplo de renovo de criatividade e perseverança na cena cinematográfica independente. Andrew Legge imprime ao seu longa um expressivo tom sombrio, caracterizando-o como uma desventura histórica que dialoga com o nosso tempo presente. Sem dúvida, um feito e tanto para alguém que apenas está começando a ganhar fôlego na indústria do cinema.
Título original: LOLA
Direção: Andrew Legge
Ano de lançamento: 2022
País: Irlanda e Reino Unido
Duração: 79 minutos
Disponibilidade: Cinemas
Distribuição: Pandora Filmes
*Recifense, 40 anos, sociólogo. Antirracista, aliado do feminismo e das causas indígenas e queer, torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantém no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil no Letterboxd. Integrante do Podcast Cinema em Movimento e dos sites TemQueVer Cinema e Club do Filme.