Mil e Um (Crítica)

Por Sthefaniy Henriques*

Nova York nem sempre foi a Nova York que atualmente conhecemos. O Central Park nem sempre foi um lugar tranquilo como vemos em Friends e a Upper West Side nem sempre foi um distrito rico como assistimos em Encantada. Nova York passou por transformações gerais que, sob um certo olhar, recuperaram a grandeza da cidade, mas, por outro, causaram um impacto negativo profundo em questões socioeconômicas.

Em Mil e Um, somos transportados para a Harlem da década de 1990. Um bairro orgulhosamente negro, onde vestígios do renascimento cultural e do hip-hop habitavam nos mesmos espaços que a pobreza e atividades ilícitas causadas, em boa parcela, pela ‘‘epidemia do crack’’. Se, ainda durante a década de 90, o Harlem está marcado como um péssimo lugar para negócios (redlining), durante os anos 2000, há o início do processo de gentrificação. As construções se revitalizam, mas os moradores originais, tipicamente de baixa renda, não conseguem se manter nos espaços. A demografia muda. O Harlem começa a ficar ‘‘branco’’.

É importante termos em mente a transformação do bairro, pois os espaço e as questões sociais que se resultam dele são uma peça crucial para o filme de A.V. Rockwell. A jovem diretora, já habituada a fazer curtas sobre a cidade de Nova York (e consequentemente os seus problemas sociais), posiciona na Harlem dos anos 90 e 2000 uma jovem mulher negra de 22 anos, recém saída da prisão, sem nada, com apenas um alguém. Esse alguém é seu filho, Terry, que está no sistema de acolhimento, após ser abandonado.

Quando Terry tenta fugir de seus pais adotivos e sofre um pequeno acidente, Inez (Teyana Taylor), temendo com a possibilidade de não encontrar o filho novamente quando ele se mudar para um novo lar adotivo, decide, impulsivamente, sequestrá-lo para que possam reconstruir a vida juntos. Escondendo-se e, posteriormente residindo no Harlem, Inez lutará pelos dois, mas principalmente por Terry.

Através de Terry e Inez, mas, principalmente da matriarca, o Harlem fala, se expressa. Dessa forma, Rockwell apresenta um trabalho cuidadoso de câmera, resultando na excelente execução de mutações de seu movimento, cortes e planos. Esse trabalho constitui subjetivamente uma internalização que acompanha dois fatores que andam de modo indissociável na narrativa: as mudanças no Harlem e o crescimento de Terry.

Dessa forma, no primeiro ato do filme, com Terry aos seis e envolto em um bairro onde a criminalidade é alta, Rockwell opta por cenas que aparentam vir da câmera de um voyerista. Diante do desespero de Inez em encontrar um lugar para dormir e esconder Terry, as sequências estão constantemente transmitindo um sentimento de observação alheia, de perigo, de que a qualquer momento algo muito ruim pode acontecer para ambos.

A medida em que Terry cresce e os problemas de Inez superaram o da descoberta e se tornam sobre ser mãe de um garoto negro, a câmera se ‘‘acalma’’, o ritmo do filme diminui e o drama estilizado, anteriormente já muito presente, prevalece. A angústia, no entanto, não vai desaparecer. Repito, Inez continua sendo a mãe de um garoto negro, de um garoto negro de 13 anos em um bairro onde a violência policial substituiu as gangues.

Mesmo que o perigo ainda esteja presente em cada passo de Terry, gradualmente vai ocorrer a subjetivação e isso vai acontecendo não apenas porque o Harlem aos poucos vai se transformando, mas também porque Inez se desdobra para oferecer a Terry uma vida estável, onde ele tem um padrasto companheiro e afetuoso, uma boa escola, videogames e até mesada. Para o garoto, nada falta.

E se nada falta, é porque ele tem Inez como mãe. Como eu disse anteriormente, a história do Harlem vai se expressar principalmente através de Inez, uma personagem poderosa por ser extremamente real.

Em uma das melhores atuações femininas do ano, Teyana Taylor é o espírito da mulher negra do ‘‘gueto’’, a mulher constantemente negligenciada, angustiada e responsável por absolutamente tudo ao seu redor. A mulher onde a única rede de apoio são outras mulheres em situações exatamente similares. A mulher que precisa se desdobrar para levar dinheiro para casa e, ao mesmo tempo, estar presente na vida de seus filhos. Que decide que seus sucessores merecem uma vida melhor em comparação a que teve e, dessa forma, coloca os sonhos e o bem estar deles acima do seu. É constantemente secundarizada.

A subjetivação vem dos novos desafios de Inez, em uma luta que não é mais pelo direito de criar seu filho, mas existir e dá a ele uma vida digna em um bairro onde as ameaças continuam a existir, mas agora são mascaradas, mais sorrateiras e menos fisicamente violentas pelo efeito da gentrificação. Nesse sentido, Rockwell acerta ao não transformar essa vida árdua em uma espetacularização ou em um discurso meritocrático como em A Procura da Felicidade.

Sem abdicar de um projeto hábil e criativo,  Rockwell reflete a vida de milhares de mulheres que existiram e ainda habitam no Harlem. Mulheres cujo ações dúbias, com o aproximar da câmera, podem revelar o que está por detrás de seus atos: o sistema discriminatório, a violência, o desespero.

Vencedor do Grande Prêmio do Júri em Sundance, Mil e Um fez uma estreia tímida no Brasil. Escrevo, dessa forma, para que a produção atinja a mais pessoas, pois Mil e Um é um dos melhores filmes de 2023 e tem muito a dizer.

*Formada em História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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