“MOTEL DESTINO” E A DIMENSÃO POLÍTICA DO DESEJO (Crítica)

Por Pablo Rodrigues*

“O que aconteceu?

Eu nasci”.

O cinema do cineasta Karim Aïnouz pode ser encarado como um cinema do desejo. Desde MADAME SATÃ (2002), seu primeiro longa-metragem, o diretor cearense construiu uma filmografia onde, em grande parte de suas obras, o desejo é o motor que impulsiona suas personagens e narrativas, com o sexo e a violência sendo, ao mesmo tempo, ferramentas de dominação e também de resistência. Em MOTEL DESTINO (2024), seu mais novo projeto que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes desse ano, não é diferente.

Primeiro filme do diretor rodado inteiramente no estado do Ceará desde O CÉU DE SUELY (2006), MOTEL DESTINO conta a história de Heraldo (Iago Xavier), um jovem jurado de morte que encontra refúgio em um motel de beira de estrada, onde acaba influenciando diretamente a vida de seus poucos habitantes. No local, ele se envolve em um perigoso triângulo amoroso com Dayana (Nataly Rocha), uma funcionária do estabelecimento que também é esposa do proprietário Elias (Fábio Assunção).

Em MOTEL DESTINO, Karim Aïnouz toma como referência o cinema policial noir americano das décadas de 1940 e 1950, utilizando muitos de seus elementos típicos, como o tom cínico da trama, personagens dúbios, crime e até mesmo a clássica femme fatale ou dama fatal. Contudo, o diretor adapta a estética do gênero para a realidade brasileira, especificamente a da ambientação do filme, a saber, o litoral cearense, transformando seu longa em uma espécie de neo noir tropical.

Assim, se nos filmes clássicos do cinema noir a fotografia é expressionista, repleta de sombras e contrastes para refletir o estado emocional dos personagens, em MOTEL DESTINO, a belíssima fotografia de Hélène Louvart abusa de cores quentes, vivas, do neon que, juntamente com o suor dos corpos em tela, reforçam uma sensação de calor e tesão que, ao mesmo tempo que contribui para criar o erotismo da trama, também transmite uma sensação de opressão.

Esta estética reflete muito bem a proposta do filme, bem como seu conteúdo temático. Com ela o diretor constrói um triller erótico sobre paixão, violência e sobrevivência, que dialoga diretamente com o contexto social e político do Brasil contemporâneo. O roteiro, escrito também por Aïnouz em parceria com os roteiristas Mauricio Zacharias e Wislan Esmeraldo, transforma o motel da trama em um microcosmo que reflete características da sociedade brasileira atual, marcada pelo crescimento cada vez maior do conservadorismo.

Nesse sentido, a escolha de utilizar um motel como ambientação da trama é muito sagaz, já que este tipo de ambiente, diferente de outros lugares do mundo, onde é apenas um tipo de pousada, no Brasil adquire outra configuração, a saber, um lugar onde as pessoas vão para ter relações sexuais. Consequentemente, este tipo de local acaba sendo também um espaço onde estas pessoas dão vazão aos seus desejos mais ocultos, geralmente aqueles reprimidos pelo moralismo social.

Assim, o “Motel Destino” da trama surge como alegoria de nossa sociedade atual, que usa do moralismo conservador e religioso como fachada para esconder seus reais desejos, os quais se materializam em espaços como os motéis, nos quais a pulsão sexual latente de seus habitantes e frequentadores é materializada. Nesse sentido, o excelente design de som do filme exerce um papel fundamental ao inserir gemidos sexuais a todo momento nas cenas que se passam no motel, nos lembrando a todo momento o desejo que cerca aquele ambiente e as personagens.

Personagens estas que também refletem muitos aspectos da sociabilidade brasileira contemporânea. O roteiro brinca com as narrativas gregas clássicas sobre destino para discutir seus temas. A começar pelo protagonista, Heraldo, vivido com intensidade pelo estreante Iago Xavier. Um jovem negro e nordestino que, assim como tantos outros, vivencia a violência desde sempre, passando a vida tentando sobreviver, recorrendo ao crime, contudo, acaba sempre encontrando mais violência e exploração, não conseguindo assim viver sua liberdade. Por outro lado, ao se refugiar no Motel Destino, Heraldo novamente perde sua liberdade e volta a ser explorado, tornando-se quase um refém daquele lugar.

Da mesma forma Dayana (numa ótima atuação de Nataly Rocha) que, além de ter que trabalhar em um estabelecimento do qual também é sócia, ainda vive em um relacionamento abusivo com o seu marido Elias, o proprietário do motel (numa atuação com muita entrega e competência por parte de Fábio Assunção). Assim, temos dois personagens oprimidos, explorados e objetificados pelas relações que vivenciam, desejando se libertarem das violências que os cercam e viverem suas liberdades. E são estas experiências em comum, somadas ao desejo sexual que grita e geme (literalmente) a todo momento naquele lugar, que aproximam Heraldo e Dayana.

O longa possui um pequeno problema de ritmo em seu segundo ato, contudo, isso é corrigido no terceiro ato, que volta à uma dinâmica eficiente e fecha com um bom clímax. Pena que o filme ainda se estenda mais do que deveria nos minutos finais, além de cair na armadilha de usar diálogos expositivos demais para expressar o sentimento das personagens, chegando a ser redundante, algo que o roteiro havia evitado até então.

Com produção da Gullane e distribuição da Pandora Filmes, MOTEL DESTINO é o primeiro filme de uma trilogia idealizada por Karim, a chamada “Trilogia de Motel”, que será seguida pelos longas TREVO DE QUATRO FOLHAS e LANA JAGUARIBE, ainda sem datas de lançamento. Um filme intenso, provocador, que escancara as contradições do Brasil atual e mostra que o desejo também é político e, portanto, também pode ser uma ferramenta de resistência.

 Distriubição: Pandora Filmes

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*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.

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