Não Olhe para Cima

Por Álvaro Nicotti*

Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up) tem despertado opiniões divergentes em qualquer círculo de debates, seja presencial, em grupos de whatsapp ou até mesmo nos comentários de uma coluna virtual de jornal. Um filme que rompeu a bolha da crítica cinematográfica e se tornou objeto de análise de formadores de opiniões de outras esferas. Políticos, economistas, escritores e religiosos se portaram como analistas de cinema e passaram, ou não, a indicar o filme. Somente isso, já é um indicativo de que o filme é bom ou, para soar mais tênue minha orientação, um filme que Tem Que Ver.

Trata-se de uma sátira da sociedade negacionista. Quando não é mais possível ridicularizar os cientistas que estão tentando avisar a catástrofe que está prestes a acontecer e as evidências são visíveis “a olho nu”, a ordem é não olhar para cima.

A ordem não é apenas “não olhar para cima”, mas continuar olhando para baixo, seguindo ordens arbitrárias, absurdas e burras e fazer de conta que nada está acontecendo com o Mundo. O planeta se vê em uma situação de extinção em massa, mas a orientação das autoridades, que ocupam o espaço de poder, é de ignorar o fato. Afinal, ele vai gerar mais empregos e acabar com a pobreza.

Um filme que justifica seu debate, pois traz muito da realidade atual dos últimos 5 anos, principalmente no Brasil.

O filme é bom?

Não Olhe para Cima é um bom filme, mas apresenta problemas. Muito das análises especializadas focaram na tese de que o conteúdo temático do filme é muito bom. Que os temas são super relevantes, mas que não apenas de bons temas se faz um bom filme.

O tempo de filme poderia ser encurtado e alguns personagens ali apresentados poderiam ser descartados que sua falta não comprometeria a obra (Yule, interpretado por Timothée Chalamet, seria um deles). Além disso, se o filme tinha a intenção de me fazer rir, não conseguiu. Pode ser porque ainda o tema em questão (negacionismo) seja ainda muito atual e intenso e, como negacionismo mata, não foi possível achar tanta graça disso.

No entanto, a grande qualidade de Não Olhe para Cima é a discussão que ele gera em torno da mediocridade da sociedade, que o diretor busca ridicularizar. Um filme que fala sobre o óbvio, de uma sociedade que vive do espetáculo e finge não ver o óbvio.

Um pouco de polêmica

Uma das polêmicas que notei nas discussões sobre o filme foi o machismo, transposto nas escolhas das personagens mulheres. Por que uma presidente mulher como referência ao último presidente estadunidense? Por que uma repórter fútil? Por que aquela velha cena da esposa (cônjuge da personagem de DiCaprio) que passa pano na traição em nome da família tradicional americana?  Para mim, este não é o problema central. A pergunta aqui é: qual é a mulher negra do eixo principal da trama? Neste ponto, o crítica que o filme tenta fazer acerta o diretor, inclusive.

Outra questão importante de destacar é a linguagem do filme, na hora de tentar mostra ao público como funcionam as relações de poder no governo dos EUA. Não é fácil explicar para um grande público como funciona a submissão de um Estado frente a uma grande empresa. Como explicar para leigos e pessoas comuns como nós como que as grandes decisões da maior potência do mundo não são do Estado, muito menos do povo, mas sim das grandes corporações? Neste sentido, só falta desenhar se essa mensagem não foi captada no filme.

A imbecilidade como tema central

O filme é imbecil, pois é para evidenciar a imbencilidade da sociedade “americana”.

Os EUA são um uma nação imperialista e de forte influência política e econômica no mundo inteiro. Mas não exerce tão somente este tipo de influência. A religião é uma forte aliada estadunidense e é a principal arma de poder de dominação: uma dominação cultural sutil que, sem hesitação, emburrece as grandes massas e possibilita a implementação de um projeto de poder, desenvolvido no pós guerra e fortalecido nos últimos 30 anos.

Para se ter uma ideia dessa manipulação cultural, tem-se a estatística de que quatro em cada 10 norte-americanos acreditam que Deus criou a Terra e os seres humanos há menos de 10 mil anos, segundo uma sondagem da Gallup. Por sinal, A Gallup (empresa estadunidense de pesquisa de opinião) divulgou outro resultado curioso: três em cada quatro norte-americanos veem a Bíblia como a palavra de Deus. (Esses dados você pode analisar de forma mais profunda em entrevista dada por Noah Chomsky, transcrita por Vicence Navarro).

Sabendo destes dados e tendo uma pequena ideia de como a banda toca no seio da sociedade norte americana, faz sentido o teor imbecil do filme. As piadas, por mais que não sejam tão engraçadas por diversos motivos, se justificam quando temos este entendimento.

Negacionismo, controvérsia e consenso científico

Uma questão em particular me chamou a atenção: o termo “consenso científico” utilizado no inicio do filme, quando ainda se questionava a descoberta do asteróide, pelos cientistas, sem a população estar informada da iminente tragédia. Mas afinal, o que é consenso científico (e controvérsia científica)?

O consenso científico é quando a maioria da comunidade cientifica apresenta a mesma conclusão para determinado fato que está sendo pesquisado. Já a controvérsia, é quando uma parte tem determinada conclusão e outra parte da comunidade cientifica mundial tem uma resposta diferente ao mesmo objeto de pesquisa estudado. (Assista o vídeo para mais informações clicando aqui).

Esse tema, por mais que tirado de uma simples cena, é de extrema importância nos dias de hoje. Querem um exemplo? Nos EUA, desde a década de 1970, já havia um consenso científico sobre o tabagismo conter substâncias cancerígenas. Porém, só virou consenso de fato a partir da década de 1990, pois durante 20 anos, empresas de cigarros patrocinavam pseudos cientistas e formadores de opinião da época para gerar a controvérsia.

Quanto ao tema aquecimento global temos o mesmo caso. A pandemia de Covid 19 também apresentou (e apresenta) esta mesma característica, e no caso da descoberta do meteoro temos essa mesma prática.

Conclusão

Vejo muito crítico de cinema menosprezando o filme, debruçados muito em seus aspectos técnicos (o que é legítimo). Mas na verdade, Não Olhe para Cima é um deboche ao sistema americano de governar. Corrupção, governo de ricos para ricos. Um feijão com arroz para constranger a classe média. Escancara o ridículo dessa nossa classe com pensamento majoritário fascista e idiotizado.

Facilita o deboche para com aqueles que se dizem pertencer a uma classe culturalmente superior, mas que elegeu um projeto de poder que tem como um de seus pilares o negacionismo científico. Se antes era difícil sintetizar um argumento compacto contra a imbecilidade, agora existe um filme.

O filme tem falhas? Claro. Mas a boiada está nele: NÃO OLHE PARA CIMA

Não Olhe para Cima

Diretor: Adam Mckay

Disponível na Netflix

 

*Professor, pesquisador e colaborador do Tem Que Ver.

 

 

 

 

 

 

 

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