Por Felipe de Souza*
Na corrida pelo Oscar de Melhor Filme e Roteiro Adaptado, “Nickel Boys” (2024), dirigido por RaMell Ross, surge de forma discreta, mas com grande impacto. A adaptação do romance vencedor do Pulitzer, escrito por Colson Whitehead, leva ao cinema uma história ambientada na Flórida segregacionista dos anos 1960, expondo as atrocidades cometidas na Nickel Academy, um reformatório para menores que, sob o pretexto de correção, perpetua um sistema de abusos e violência institucionalizada.
A trama acompanha Elwood Curtis (Ethan Herisse), um jovem idealista influenciado pelos discursos de Martin Luther King Jr., que sonha com um futuro melhor apesar da segregação ao seu redor. No entanto, um erro judicial o leva à Nickel Academy, onde conhece Turner (Brandon Wilson), um jovem pragmático e cético. A amizade entre os dois se torna essencial para a sobrevivência no reformatório, onde são submetidos a castigos físicos, abusos psicológicos e trabalhos forçados. Alternando entre passado e presente, o filme revela os impactos desse trauma na vida adulta dos personagens.
Ross, conhecido por seu olhar documental em “Hale County This Morning, This Evening” (2018), adota uma abordagem híbrida em “Nickel Boys”, aproximando a obra da realidade sem recorrer a uma dramatização convencional. A fotografia de Jomo Fray é fundamental nesse aspecto, utilizando iluminação natural e uma paleta de cores desbotadas para evocar memórias e transmitir o peso do trauma. O reformatório, filmado com tons opacos e sombras alongadas, reforça um ambiente de constante opressão, acentuado pela razão de aspecto 1.33:1.
Mais do que retratar uma injustiça histórica, “Nickel Boys” desafia o espectador ao investir em uma linguagem imersiva. A escolha pelo uso recorrente de câmera subjetiva, pouco comum em dramas históricos, coloca o público dentro da experiência dos personagens, impedindo qualquer distanciamento emocional.
A câmera frequentemente privilegia planos fechados com pouca profundidade de campo, captando as expressões dos personagens e intensificando a sensação de confinamento. Em contraste, as cenas externas adotam planos mais abertos, evidenciando a ironia da natureza exuberante que cerca a instituição, que para os seus detentos é um espaço de violência travestido de lar de reabilitação. Essa dicotomia visual reforça a disparidade entre aparência e realidade.
A montagem evita a linearidade tradicional, utilizando elipses e cortes abruptos para construir um fluxo de memórias fragmentadas, refletindo a forma como o trauma se manifesta na mente dos personagens. Essa escolha estilística, que remete ao cinema de Terrence Malick, reforça a subjetividade da narrativa. A alternância entre a juventude de Elwood e sua vida adulta deixa claro que a experiência do reformatório não ficou confinada ao passado, ela persiste, moldando vidas e perpetuando cicatrizes invisíveis.
Para ampliar a conexão entre ficção e realidade, Ross incorpora imagens documentais e gravações históricas, incluindo referências diretas à Arthur G. Dozier School for Boys, instituição real que inspirou o romance de Whitehead. Essa fusão entre registros históricos e a encenação cinematográfica confere autenticidade e intensidade à denúncia.
O elenco entrega performances marcantes. Ethan Herisse, interpreta com sensibilidade um jovem cuja ingenuidade é gradualmente corroída pela brutalidade do sistema. Sua atuação contida acentua a transformação do personagem, tornando os momentos de violência ainda mais impactantes. Já Brandon Wilson, apresenta um contraponto pragmático e endurecido, criando uma forte dinâmica entre os protagonistas. Já Aunjanue Ellis-Taylor, como a avó de Elwood, está bem, embora sua personagem fique ausente durante grande parte do filme.
A trilha sonora de Scott Alario e Alex Somers é usada com parcimônia, permitindo que o silêncio e os ruídos ambientes assumam um papel importante na narrativa. A ausência de música em cenas de violência amplifica seu impacto, forçando o espectador a encarar o horror sem distrações sonoras. Os efeitos sonoros são igualmente fundamentais, com som do que está fora do campo da câmera, os ecos dos passos e o som seco dos castigos físicos criando uma atmosfera opressiva.
“Nickel Boys” dialoga com obras clássicas que denunciam o racismo institucional, como “Acorrentado” (1958), citado com trechos durante o filme, e recentes como “A 13ª Emenda” (2016) e “Se a Rua Beale Falasse” (2018), mas se diferencia por sua abordagem híbrida, que mescla uma linguagem documental com uma estrutura fragmentada e reflexiva.
Além disso, a obra se insere na tradição crítica defendida por Angela Davis e outros militantes do movimento pelo abolicionismo penal, expondo como reformatórios e prisões funcionam como extensões da escravidão, perpetuando a exploração e o controle sobre corpos negros. A Nickel Academy não é apenas um espaço de punição, mas um microcosmo do racismo estrutural nos Estados Unidos.
Ao evitar uma narrativa convencional e apostar em uma estética que mescla realismo documental e subjetividade poética, fugindo do formato de uma mera adaptação literária, “Nickel Boys” se firma como um dos melhores do ano. Mais do que contar uma história, o filme provoca, desafia e exige reflexão. Ele reafirma o cinema como ferramenta de resistência, garantindo que as vozes silenciadas pela história jamais sejam esquecidas.
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*Cinéfilo e Membro do Podcast Cinema em Movimento