Por Jeanyne Garcia*
Lars von Trier sambou na cara da sociedade ao abordar dois temas (ainda) tabus: sexo e prazer feminino, ah e claro na verdade uma extensão do último, o estado doentio da busca por este mesmo prazer. Joe conta sua história a um desconhecido que a encontrou jogada em um beco depois de uma surra. Um terço do filme se passa no quarto insosso de seu salvador. Na verdade achei muito interessante o diálogo entre aqueles dois improváveis confidentes: um sessentão que não havia jamais feito sexo e uma mulher no fim dos trinta com um currículo incontável de amantes.
Esta semana rolou na net um protesto chamado “eu não mereço ser estuprada” como forma de reação aos vergonhosos 65% de pessoas que responderam na pesquisa do IPEA que uma mulher com roupas curtas está pedindo para ser abusada. Vou fazer um mea culpa porque eu já fiz parte desta maioria. Eu já olhei com desconfiança quando alguém me contava ou quando lia uma notícia sobre estupro e a primeira coisa que pensava era: ah mas ela tava de saia, não? Como se isto nos colocasse um neon de “foda-me” e o cara ficasse impedido de se conter. Tá mas e o que que tem a ver o cu com as calças (ou a falta delas)?
Ninfomaníaca beira o pornô, mas eu digo beira porque a história é tão densa e cheia de mensagens sutis que somente um adolescente iria enxergar como puro sexo. Joe é a própria luxúria negada a toda mulher direita e mãe de família. Joe fez exatamente aquilo que se espera dos homens, mas ao contrário de receber aprovação da sociedade, o seu comportamento é considerado como doença. A personagem carrega em doses iguais tanto a culpa como o desejo, tanto a revolta como o arrependimento, tanto o prazer como a dor. Através de alguém que busca compreendê-la, vai abrindo-se dividida em capítulos, sendo encorajada por analogias que ligam o sexo a algo tão banal como o papel de um anzol na pescaria. Ela confia, ele lhe dá motivos para tal, e quando já está completamente entregue ao cansaço e absolvida de seus desvios, eis que seu protetor entra sorrateiramente pela cama. Trazia o membro semi duro pronto para estuprá-la: mas qual era o problema, se ela já tinha transado com tantos?
(Lars Von Trier)
O corpo feminino ainda é visto como algo material, algo que pode ser vendido, comprado, invadido. O corpo da mulher ainda é visto como público. As pessoas podem julgar, podem fazer cantadas, passar a mão, encoxar no metrô. As pessoas não, os homens. E apesar de termos no Brasil uma relação aberta com a sexualidade, digamos que olhando melhor, esta parece um tanto bizarra. Porque corpo feminino está em tudo: no clip do skank, na propaganda de cerveja, na revista de moda… mas apesar disto, ele ainda é fetichizado. O corpo da mulher é de todos, menos dela mesma. Pensamentos de que a mulher pelas roupas que veste “atrai” o abuso sexual transferindo toda a culpa para a vítima, de que seu comportamento na cama legitima que seja chamada de puta, são reflexos claros do quão disfuncional é a nossa sociedade (e nisto incluímos não só homens, mas mulheres com discurso machista que o reproduzem sem tê-lo consciência). A maldição de Joe nada mais é do que a inexatidão em enquadrá-la entre uma figura da clássica vagabunda ou a da doente viciada em sexo, pela falta de pênis, porque se o tivesse seria a sua busca por prazer considerada ninfomania?
*Historiadora