Um case de sucesso dentre as cinebiografias contemporâneas, ainda que imperfeito
NOTA: 7,0
Por Leonardo Lima*
Com estreia em 2004 pela NBC, o reality show The Apprentice transformou-se num fenômeno global, ganhando, inclusive, uma versão brasileira com o título de O Aprendiz. Comandado pelo bilionário norte-americano Donald J. Trump, o programa certamente serviu de catapulta para massificar o nome do empresário junto a um público amplo e diversificado da população dos Estados Unidos da América (EUA), preparando o terreno para que, uma década depois, ele anunciasse sua candidatura à Casa Branca e, após a maratona das prévias republicanas, fosse eleito presidente derrotando a democrata Hillary Clinton.
Agora, exatos vinte anos desde a primeira exibição televisiva do reality que serve de ode ao business world, o programa volta a rondar Trump, desta vez como um espectro fantasmagórico que ameaça impactar negativamente sua campanha de retorno à presidência. Essa fantasmagoria assume a forma de uma cinebiografia dirigida pelo iraniano-dinamarquês Ali Abbasi (Border e Holy Spider), o controverso O Aprendiz.
Em primeiro lugar, reconheça-se os esforços salutares de Abbasi em fugir ao formato pasteurizado, criativamente paupérrimo, de grande parte das obras cinematográficas que se debruçam sobre a vida e/ou a trajetória pública de alguma figura histórica relevante – a exemplo dos recentes casos de Amy Winehouse – Back to Back e I Wanna Dance with Somebody – A História de Whitney Houston. Essa tentativa do diretor é exposta logo na abertura, quando vemos o ex-presidente Richard Nixon – único em toda a história do país a renunciar ao cargo, em virtude das denúncias envolvendo o caso Watergate – a discursar com cinismo envernizado em tons de formalismo ilibado, declarando-se não apenas injustiçado, mas, alguém cuja honestidade foi questionada de modo leviano. Nada mais familiar ao que vimos há poucos meses à porta dos tribunais norte-americanos, desta vez protagonizado eloquentemente por Trump.
De modo geral, O Aprendiz funciona como uma espécie de filme-desconstrução biográfico, expondo o modus operandi ética e moralmente questionável que levou Donald Trump (Sebastian Stan) a se tornar um homem de negócios absurdamente rico e poderoso – a ponto de ele tornar-se um ícone do capitalismo contemporâneo –, contando, conforme os seus interesses crescentemente megalomaníacos, com a ajuda decisiva do inescrupuloso advogado Roy Cohn (Jeremy Strong). Este é apresentado, sem margem para dúvidas, como mentor responsável por moldar o magnata, transmitindo-lhe as supostas três infalíveis regras adotadas pelos vencedores, as quais, até hoje, são seguidas por ele com força de mantra: a) atacar para vencer sempre e a qualquer custo; b) a verdade consiste naquilo que afirmamos ser a verdade; c) nunca admitir que foi derrotado.
Se, por um lado, o percurso narrativo trilhado por Ali Abbasi definitivamente não isenta Trump com relação aos seus atos egocêntricos, narcisistas e não raramente criminosos, dando a devida exposição à sua pior faceta, por outro lado torna-se crucial perceber o filme como uma tentativa, igualmente válida, de evidenciar um personagem complexo, impensável em certo sentido, o qual vai além da caricatura grosseira em que ele se transformou com o passar dos anos. Nesse ponto, em específico, há de se destacar a primeira metade de O Aprendiz, reveladora de um indivíduo inseguro no âmbito familiar e na lida dos assuntos da empresa até então comandada por seu pai, algo tão comum na vida de herdeiros que carregam nas costas a missão de manter e expandir o que já fora conquistado (à custa, quase sempre, do suor e do sangue de incontáveis outros situados em patamares mais baixos da pirâmide social, como é apontado no filme).
Portanto, uma figura bem distante da imagem do homem durão e competente estrategicamente construída para seduzir as massas e a mídia. Esse primeiro segmento da obra nos possibilita entendê-lo como alguém cujos pensamentos e ações são frutos tanto do feroz ambiente no qual se assentam as regras impostas pelo capital financeiro quanto do soturno e violento contexto social e político nova-iorquino a partir do qual estabeleceu seu império nas décadas de 1970 e 1980. Esse lado humano do protagonista que desponta na tela, um prato farto para análise sociológica, torna cada espectador testemunha da necessidade de se exorcizar concepções maniqueístas que identificam as pessoas como sendo estritamente isso ou aquilo, pondo-as em caixinhas que viabilizam, ao nível discursivo, dicotomias sociais muitas vezes vazias, tendentes ao extremismo.
Assim, ainda que Donald Trump (o da ficção e o do mundo real) seja identificado como tendo uma personalidade autoritária, até mesmo fascista, aproximando-se daquilo que poderíamos chamar de “vilão” (da democracia e da luta por igualdade social), é sempre importante lembrar que ele nem sempre foi assim, e, mesmo nos dias atuais, não pode ser resumido apenas a uma condição “malévola”. Na densa nuvem de múltiplos e distintos papéis sociais que cada um(a) de nós interpreta enquanto ator/atriz de uma dramaturgia polifônica regida pela sociedade dos indivíduos, nada mais incorreto que se ater estritamente ao lado bom/aplaudível ou mau/execrável que, de modo contextual e reescrito a cada nova interação intersubjetiva, prepondera em nossa dimensão ôntica (isto é, do ser). Lembremos, pois, que o mesmo homem visto como um empresário de sucesso também é aquele que, no recôndito do lar, estupra a esposa como forma de puni-la por sua insubmissão.
É visível ao mais leigo dos cinéfilos o uso inventivo dos aspectos de ordem técnica e estilística, particularmente a fotografia granulada, uma bem sucedida iniciativa de emular imageticamente os anos 1970 e 1980, contribuindo, de modo decisivo, no processo de imersão na obra; ademais, ressalte-se a montagem dinâmica que faz proveito, na metade inicial, de uma câmera mais fluida e próxima às personagens, reverberando, desta maneira, a própria condição existencial conturbada de Trump àquela altura. Posteriormente, dá-se uma reconfiguração quanto ao ritmo da narrativa e à decupagem – é o momento quando entra em cena Ivana Trump (Maria Bakalova); se antes a história vinha sendo contada com ares de cultura pop, agora vemos um maior apelo para planos mais estáveis, abertos e maniqueístas, como se estes representassem, metaforicamente, o conservadorismo ao qual Donald Trump vai se filiando com o decorrer dos anos. Em outras palavras, o geist do período histórico no qual os acontecimentos se sucedem acaba por impregnar a mise-em-scène da obra, transformando-a, em sua metade final, numa espécie de recital previsível ao estilo Ronald Reagan.
O tipo de abordagem proposto em O Aprendiz acaba desagradando tanto a democratas, que veem no filme um retrato não tão pesado de Donald Trump como gostariam que tivesse sido feito, bem como a republicanos, crédulos de que o longa-metragem reforça a imagem dele como um indivíduo perigoso, capaz de tudo para atingir seus objetivos. A bem da verdade, há uma leve inclinação para tratar seu personagem principal sob uma ótica negativa, embora não suficiente para apontar o filme como um libelo antitrumpista. Para nós, brasileiros, que temos acompanhado à distância a trajetória desse sui generis representante das elites econômicas estadunidenses, o filme acaba sendo um dos mais importantes marcos cinematográficos do ano, ainda que não se constitua como um dos melhores – havia potencial para tal, caso a experiência mais disruptiva e provocadora de seu segmento inicial tivesse sido mantida até o fim.
Título original: The Apprentice
Direção: Ali Abbasi
Ano de lançamento: 2024
País: Canadá / Dinamarca / Irlanda
Duração: 120 minutos
Onde assistir: Cinemas
Quer receber conteúdo do TemQueVer no Whatsapp? (Clique aqui)
Quer escrever para o TemQueVer? Entre em contato conosco através do chat de nossas redes sociais (Instagram e Facebook) ou pelo email temquevercinema@gmail.com
*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!