O Bastardo (Crítica)

Uma nórdica, porém não tão civilizada Dinamarca desponta em filme de época estrelado por Mads Mikkelsen

Por Leonardo Lima*

Quem conhece a atual Dinamarca, país com um dos melhores índices de bem-estar e dito exemplo de civilização, não imagina o que essas frias terras nórdicas escondiam por volta de meados do século XVIII, a saber: sordidez humana digna de Hamlet, obra shakespeariana a qual muito antes já evocava haver algo de podre no reino dinamarquês.

Em O Bastardo, épico “histórico” dirigido por Nicolaj Arcel (O Amante da RainhaA Torre Negra), tal podridão não se relaciona às insidiosas tramas de bastidores palacianas no Reino da Dinamarca e da Noruega em seu apogeu, mas, sim, ao mal rodeante às ações do indivíduo comum ávido por desbravar e colonizar regiões até então entregues ao deus-dará. O filme é uma adaptação do romance histórico The Captain and Ann Barbara, escrito por Ida Jessen – daí as aspas utilizadas mais acima ao definir o filme como um épico “histórico”, uma vez que, tendo em vista o fundamento a partir do qual se dá sua composição narrativa, o longa-metragem reúne suas personagens (ficcionais ou não) em um contexto sócio-histórico condizente com documentos e dados chancelados por historiadores. Por um lado, esse hibridismo diegético revela-se, tal como no livro, um ponto forte ao abrir possibilidades diversas para se contar a história/estória do capitão Ludwig Kahlen, interpretado pelo ator Mads Mikkelsen com a potência e competência de sempre; por outro lado, acaba-se gerando armadilhas que sacrificam, em certa medida, a estruturação da proposta fílmica encenada.

Obstinado em cultivar e colonizar áreas inóspitas e de solo indomável da região conhecida como Jutlândia, o ex-militar Ludwig Kahlen se apresenta à Corte afirmando que pretendia realizar a iniciativa com recursos próprios, bastando apenas, em troca, a concessão de um título de nobreza em caso de êxito no manejo da terra. Dali por diante, observa-se a saga de um homem decidido a conquistar prestígio e respeito por intermédio de uma honraria dada diretamente pelo rei, custe o que custasse – aqui vemos o quão frutífera é a análise sociológica que considera as razões da movimentação em sociedade por parte dos indivíduos para além da dimensão infraestrutural da economia, tal como preconizado pelo alemão Max Weber ao incluir o status e o poder como pilares igualmente estruturantes da desigualdade social.

É impossível não se admirar com o resultado dos esforços do diretor Nicolaj Arcel ao contar essa história. Hábil, ele constrói aquele ambiente inóspito a partir de planos abertos que dão uma dimensão exata das dificuldades enfrentadas por Kahlen em sua empreitada solitária; isso é acentuado nas tomadas noturnas, quando o chiaroscuro enfatiza o universo de sombras, inclusive morais, no qual os personagens estavam inseridos. A nível técnico e estético, portanto, O Bastardo se mostra um exemplo exitoso de obra que sabe reconstituir uma época histórica com imaginação cinematográfica.

Durante sua jornada, Kahlen terá de lidar não apenas com o terreno seco no qual decide fundar as bases de uma futura colônia, mas, também, com pessoas que, de uma maneira ou outra, se interpõem entre ele e os seus intentos, seja como obstáculos, seja como alavancadores de esperança. Destaque especial para o aristocrata Frederik De Schinkel (Simon Bennebjerg), antagonista que encarna a própria maldade em seu estado mais puro e deplorável. A lista de personagens que compartilham a cena envolve uma gama socialmente diversa, que inclui um clérigo, uma princesa sueca, um casal de fugitivos da servidão forçada, um agrupamento de ciganos (no qual se destaca a pequena Anmai Mus, importante elo de afeto), colonos vindos do norte da Alemanha e mercenários recém-saídos da prisão, entre outros de ordem secundária.

É curioso como esse leque de personagens em torno de Ludwig Kahlen consegue transmitir uma organicidade narrativa a despeito de não haver um aprofundamento de suas características psicológicas, exceto com relação a De Schinkel, cujo agir puxado para o vilanesco é explicado por uma insegurança quanto à perda do controle sobre bens e pessoas. Ao seguir de perto a faceta mais romantizada e fictícia de The Captain and Ann Barbara, o roteiro acaba sendo ingrato com a construção de personagem do velho militar desprovido de berço decidido a mudar sua história de vida e, assim, ter seu nome eternizado ao relacioná-lo a uma mítica nobre.

É difícil imaginar o sório e determinado capitão Kahlen vivido por Mikkelsen rendendo-se de maneira tão fácil a emoções e sentimentos até então desconhecidos por ele, e, em razão disso, abandonar planos maturados ao longo de anos. Não que o amor não sirva como elemento catalisador de mudanças a nível subjetivo que impulsionam as pessoas a novas rotas existenciais; todavia, em O Bastardo, muito provavelmente sob influência do romance original, isso acaba não soando suficientemente genuíno, nem tendo o devido impacto junto ao público. 

O que fica é uma experiência agridoce, daquelas que nos deixam a impressão de ter assistido a um trabalho consistente do ponto de vista formal, mas que não propicia uma conexão empática com suas personagens, a ponto de sofrermos com as suas dores ou torcemos pelo destino que lhes espera ao final. De todo modo, justifica-se o fato de o filme ter sido a escolha da Dinamarca para representar o país na categoria de Melhor Filme Internacional da última edição do Oscar.

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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

 

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