O DIA QUE TE CONHECI e a comédia romântica à brasileira (Crítica)

Por Pablo Rodrigues*

“Dá um tempo lá em casa.

Vamo lá que eu te mostro minhas receitas de psiquiatra”.

Desde seu surgimento nos Estados Unidos durante a década de 1930, a comédia romântica se consolidou como um dos principais gêneros hollywoodianos, caracterizado por histórias de amor bem humoradas e idealizadas. Contudo, nas últimas décadas, cineastas como Richard Lincklater e Aki Kaurismäki vem propondo novas formas e tipos de narrativas para o gênero, em obras que fogem do clássico “amor romântico”. O DIA QUE TE CONHECI (2023), novo longa-metragem do cineasta mineiro André Novais Oliveira (TEMPORADA; ELA VOLTA NA QUINTA), segue essa mesma proposta.

O filme acompanha um dia na vida de Zeca (Renato Novaes), um trabalhador com dificuldades para acordar cedo e chegar no horário na escola onde trabalha como bibliotecário, até que conhece Luísa (Grace Passô), uma funcionária da mesma escola. É então que as experiências de vida de ambos, bem como suas diferenças, os aproximam, fazendo com que o dia prometa muitas surpresas para os dois.

Em O DIA QUE TE CONHECI, André Novais propõe muito mais que uma desconstrução do gênero da comédia romântica, mas também um abrasileiramento do mesmo. A começar pela imensa capacidade da obra em gerar identificação com o público já que, desta vez, vemos a realidade da classe trabalhadora brasileira em tela, com seus desafios cotidianos, suas angústias e desejos, tudo filmado com muita sensibilidade pelo diretor. As situações vistas em cena são muito semelhantes ao que milhares de pessoas vivenciam diariamente em nosso país. É o ônibus que quebra no caminho para o trabalho, o sono em excesso causado pelo uso de antidepressivos, a cervejinha da sexta-feira à noite, até o pastel de beira de esquina frito sem nenhuma higiene. Tudo é muito verossímil.

Nesse sentido, a abordagem naturalista adotada pelo diretor (o que já é recorrente em sua filmografia), mostra-se muito assertiva e reforça o “realismo” das ações em cena, com seus planos abertos e longos, com o mínimo de cortes, valorizando os silêncios nas atuações, bem como os espaços urbanos, além de uma câmera que se movimenta pouco e, quando o faz, é sempre acompanhando as personagens, observando-as, sem interferir diretamente na ação. Tal abordagem, inclusive, também é característica de boa parte de nossa filmografia brasileira.

Por sua vez, o roteiro, também escrito pelo diretor, brinca com os clichês do gênero e com as expectativas do público, criando situações onde achamos que sabemos por onde a trama vai ser conduzida (devido às fórmulas que já conhecemos das comédias românticas) para, logo em seguida, sermos surpreendidos. Essa imprevisibilidade do roteiro torna a experiência ainda mais verossímil e gratificante, entrando em sintonia com a proposta naturalista da obra pois, assim como no cotidiano da maior parte da classe trabalhadora, a vida é imprevisível, não segue os clichês dos filmes.

Além disso, o filme também faz questão de destacar um aspecto fundamental para uma representação mais verossímil e abrasileirada de sua narrativa, a saber, a questão racial. A classe trabalhadora que vemos no filme, assim como na vida real, tem cor. Quase todas as personagens da trama são pessoas negras. O casal protagonista, por sua vez, é o oposto dos tipos de beleza branca tão comuns ao gênero. São pessoas negras, gordas, fora dos padrões impostos socialmente. E essas características não são trazidas de modo gratuito, ao contrário, são utilizadas com inteligência pelo roteiro para construir e desenvolver as personagens.

O longa também consegue, numa pegada chapliniana, discutir temas delicados e profundos de forma leve e sensível, divertida até, porém, sem diminuir o peso deste conteúdo temático. A exemplo da forma como a obra reflete a questão racial e sua relação com a Saúde Mental da população negra brasileira, a qual é a mais afetada pelos problemas psicológicos causados pelo modo de produção capitalista no mundo contemporâneo. O roteiro traz, de forma muito inteligente, a saúde mental dos protagonistas (a depressão e a ansiedade que os acometem, os medicamentos que fazem uso) como o principal fator de ligação entre ambos. Problemas estes derivados das experiências destas personagens enquanto pessoas negras que vivem numa sociedade estruturalmente racista.

Nesse sentido, é lindo ver como o filme insere o afeto e o desejo que surge entre Zeca e Luísa como uma espécie de “remédio” para aliviar o adoecimento social vivenciado por ambos.  E faz isso sem cair no melodrama barato ou no clichê do “amor romântico” comum ao gênero. Tanto que acompanhamos apenas um dia na vida das personagens e não sabemos se ainda estarão juntas após os créditos finais, pois isso não importa. O que importa é o sentido que aquele encontro teve e os sentimentos que trouxe para aquelas vidas, ressignificando-as dali por diante.

Mas isso tudo não teria a mesma força se não fosse o talento do casal de protagonistas. Renato Novaes (irmão do diretor) encarna Zeca com muita verdade, conseguindo transmitir muito bem o jeito introvertido e com baixa autoestima do mesmo. Já Grace Passô rouba a cena de modo oposto ao de seu parceiro, conseguindo expor muito bem o jeito extrovertido de Luísa, que esconde ao mesmo tempo certa insegurança. E a química entre os dois está impecável, com toques certeiros de humor. São personagens carismáticos e muito bem desenvolvidos pelo roteiro, o qual sabe expor apenas o necessário, evitando as exposições em excesso.

Enfim, O DIA QUE TE CONHECI é um filme lindo. Um dos mais belos exemplares do cinema brasileiro nos últimos anos. Uma comédia romântica que desconstrói seu gênero para criar um estilo próprio de fazê-lo, à brasileira, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo temático, trazendo para a tela a nossa realidade, nossos tipos de personagens, nossos dramas, nossas dores. Uma obra que nos deixa de coração quentinho, nos lembrando que, mesmo em meio às dores e ao sofrimento causado por nossa sociabilidade, os afetos ainda são capazes de surgir para nos ajudar a levantar e seguir em frente.

Produção: Filmes de Plástico e Canal Brasil

Distribuição: Malute

Agradecimentos: Sinny Comunicação

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*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.

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