Por Sthefaniy Henriques*
Eu particularmente sinto que é cada vez mais difícil nos perguntarmos o que estava no local em que vivemos, antes de nós, de nossos pais e de nossos avós. Sinto que não existe um interesse para conhecer o que existia antes do prédio em que nós trabalhamos ou do shopping que frequentamos aos finais de semana. No entanto, não me surpreendo e, mesmo sendo historiadora, não considero esse ‘‘desinteresse’’ um argumento justificável para julgamento.
Em um momento onde o futuro nos assusta e o presente oferece tantos estímulos, é realmente difícil pensar no passado, principalmente em um passado que vou classificar como ‘‘não-hollywoodiano’’. Esse passado ‘‘não-hollywoodiano’’, ou seja, que nunca foi um cenário romantizado em filmes épicos, é um passado que simplesmente não conhecemos, mesmo que nossos pés, que nossas casas, estejam fixados nele. Ele não tem registro, não foi tombado e, independente se existem suas estruturas remanescentes, ele não é viabializado e , na maioria das vezes, estudado formalmente. O passado existe de maneira frágil na história oral, em comentários imprecisos da população mais velha e vai sendo esquecido.
Em um momento onde poucos fazem perguntas ou sequer pensam sobre o passado dos locais que habitam, Juruna Mallon e Flora Dias elaboram um filme que explora o passado de um local, o Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. Assim, eles adotam uma narrativa que transita e, inúmeras vezes, une a ficção (o encenado) ao documentário (o registro). No entanto, a parte documental não conta com a presença de um pesquisador da História Regional daquele local, um amigo morador ou, até mesmo, um trabalhador que fez parte da equipe de construção do Aeroporto. Mallon e Dias investem na construção da história de Alê, uma funcionária fictícia do Aeroporto que, antes de trabalhar ali, morava naquela mesma região, antes da construção.
Nesse sentido, Alê se torna porta de entrada para relatos de pessoas reais como indígenas da região, no entanto, sua encenação também vai permitir que seja representada a vida de pessoas não-indígenas que moram perto do Aeroporto. Dessa maneira, são registradas a manifestação do candomblé como religião de parte da população e a vida desesperadora de pessoas que possuem o trabalho no Aeroporto como expectativa para o futuro. Assim, naquela região, somos apresentadas a vidas indígenas que representam o impacto da chegada dos Europeus em 1500 e vidas que simbolizam o impacto da chegada do Aeroporto no local. Adota-se assim a lógica de posse da terra, amansamento da população e exploração de sua mão de obra para o trabalho que os invasores propõem.
Apesar da ótima intenção de Mallon e Dias, eu percebo que O Estranho se torna uma produção que não consegue cumprir com êxito a sua intenção. O foco, que é o passado através de Alê e de outras pessoas, se perde entre romances, sequências com dancinha tiktok e diálogos que não possuem um valor real para reflexão. Diante disso, as múltiplas histórias dos múltiplos povos que viveram naquela região continuam sendo, de certa maneira, um mistério, este que finge ser revelado através da câmera.
Mallon e Dias utilizam da abordagem documental para exibir que, naquele local, ainda existem múltiplos povos indígenas vivendo juntos e, honestamente, não existe tanto mistério em presumir o que resultou no agrupamento de nove povos diferentes em um espaço tão limitado. No entanto, elas se esquecem de fazer o mesmo em relação à população mais recente, aos dos últimos duzentos anos e a própria geração de Alê. Alê e sua ficante são resultados de um projeto de invasão, elas dormem com o barulho do aeródromo e possuem ele como seu quintal. Porém, O Estranho deixa de lado as memórias de Alê, suas lembranças daquele local antes da chegada do Aeroporto. Alê falando uma ou duas vezes sobre a organização da rua não é o suficiente, não forma para o espectador um passado compreensível e convincente. Sendo assim, o que quer que fosse aquela região antes do Aeroporto, permanecerá desconhecido para nós.
O Estranho tem uma ótima intencionalidade. E, nas transições entre o futuro e o passado, o documental e o ficcional, garante cenas belíssimas. Mas, ainda assim, é uma produção que falha em nos apresentar o passado. É como se perguntássemos a um morador de local ‘‘X’’ como era aquele lugar antes de seu nascimento e tal morador, que nunca se interessou pela história contada pelos seus pais ou avós, pegasse fragmentos e tentasse criar uma explicação. Ele não sabe e O Estranho também não.
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*Formada em História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.