O Mal não Existe (Crítica)

O mal como fruto do desequilíbrio nas relações do homem com a natureza na obra-prima de Ryūsuke Hamaguchi 

Por Leonardo Lima*

Berço seminal de nomes consagrados do cinema, o Japão continua a demonstrar nos dias atuais o quão frutífero é o país para renovar, em patamares elevados, o seu panteão de cineastas capazes de encantar o público com histórias que se constituem como mananciais dos quais a natureza da condição humana brota em sua complexidade indelével. Ryūsuke Hamaguchi consta como um dos nomes que, nos últimos anos, mais tem causado furor com o lançamento de seus projetos – Asako I & II (2018), Roda do Destino (2021) e Drive My Car (2021), ganhador do Oscar de Melhor Filme Internacional.

Intitulado (com boa dose de opacidade cínica) como O Mal Não Existe, o mais recente trabalho de Hamaguchi vem para conquistar um lugar de destaque na filmografia do cineasta. Logo na abertura somos surpreendidos por um longo contra-zenital em travelling diurno, cena esta que, para além de sua composição estética abstrata, evoca, simultaneamente, o caráter contemplativo, imersivo e poético dessa estreita relação entre homem e natureza proposta como fundamento narrativo – a mesma também prenuncia o tom de incertezas sombrias que domina o filme particularmente no terceiro ato.

Takumi (Hitoshi Omika) é uma espécie de faz-tudo comunitário numa pequena vila rural não muito distante de Tóquio, lugar este no qual as pessoas seguem um estilo de vida baseado na crença de que o bem-estar é maximizado a partir da convivência harmônica com os demais elementos da natureza, devendo esse equilíbrio ser mantido a todo custo. Esse equilíbrio é ameaçado pelos planos ambiciosos de uma empresa que deseja instalar um camping de elite nos arredores da vila, o qual provocará impactos imediatos e duradouros no meio ambiente, afetando diretamente a população ali vivente.

Um dos aspectos mais inusitados de O Mal Não Existe é o humor que emana naturalmente, sem forçar a barra, de algumas situações postas, as quais, em si, a priori, não poderíamos esperar serem engraçadas, a exemplo de uma cena em que Takumi corta lenha sendo pacientemente observado por dois funcionários da empresa, ou da sequência que envolve a realização de uma reunião na qual é apresentado à comunidade o projeto de empreendimento turístico. Por sinal, essa passagem do filme, em específico, é de um primor cinematográfico único, já que extrai, a partir dos diálogos, um discurso simples mas poderoso, isento de ingenuidade sobre a necessidade de se defender a natureza dos interesses de capitalistas ávidos por lucros sem limites. A ênfase discursiva aqui é ressaltada através da montagem, que, de maneira dialética, baliza a tensão do embate entre as partes, ora expondo representantes da empresa acuados, ora moradores firmes em seus propósitos de dificultar a instalação daquela empreitada comercial.

À medida que a história avança, as tentativas no sentido de convencer Takumi quanto a uma adesão ao projeto, por meio de sua “ascensão” ao posto de vigilante do local, vão borrando as fronteiras que simbolizam o bem e o mal nesse alegórico conflito em curso, evidenciando para o espectador o quão drásticas e inesperadas podem ser as consequências causadas pela quebra do equilíbrio nas relações do homem com o meio natural que o cerca – particularmente no que tange a Takumi, que em meio ao sumiço repentino de sua filha Hana (Ryô Nishikawa), revelar-se-á capaz de tudo para tentar reverter o estado de sombras mórbidas que se impôs sobre a floresta desde o momento em que os tentáculos do capitalismo inescrupuloso foram lançados em direção a mesma.

No entanto, a julgar pelo plano final do filme, antítese perfeita e deprimente de sua tomada inicial, aquele lugar, uma rara reminiscência do paraíso perdido por conta da dominação da natureza pelo homem, em todo o seu potencial destrutivo, parece destinado a não mais ser o mesmo de antes, maculado que está pela violência perpetrada como resposta à desleal agressão sofrida pela Mãe Terra – o véu escuro da noite definitivamente se apossou daquele lugar onde o mal até então não existia

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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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